Alívio




Minha mochila anda pesada demais. Sempre carreguei muita coisa em minha bolsa ou mochila. Mas agora ela anda pesada demais da conta. Tem de tudo – o necessário e o desnecessário. Eu já fui mais prático, mas ultimamente, não jogo nada fora, e sempre arrumo um lugarzinho pra guardar mais coisas.

Quantas vezes carregamos mais do que podemos aguentar?. Às vezes, eu acho que levo comigo o não-permitido. Decidi então, diminuir este peso que carrego nas costas há muito tempo.

Não tenho necessidade de carregar tantos sentimentos de uma única vez. Lembranças pesam. Saudades pesam. Arrependimentos pesam. Raiva pesa. E lágrimas retidas pesam e incham o corpo.

Agora, antes de sair, dou sempre uma olhada no que carrego para ver se eu esqueci alguma coisa desnecessária num canto qualquer da bolsa.

O que fiz com as coisas que ali estavam? Bem, estão em outro lugar e a cada momento, vou descartando ou reciclando - quando acho que vale a pena.

As lágrimas, por exemplo, foram todas levadas pela água da ducha quente um dia desses. É ... Chorar no banho não marca a cara e além de expulsá-las, aproveitamos para lavar a alma.

Hoje, eu estou saindo daqui pra comprar uma mochila perfeita para ser carregada nas costas. Ela é bem menor.


Paulo Francisco

Ainda chove


Ainda chove. Há camadas e mais camadas de nuvens indefinidas, pálidas e aguadas sobre a minha cabeça.  O céu está insosso.  Definitivamente no céu da minha boca não há estrelas, não há sol, somente esperança.

Ainda carrego comigo as angustias do passado de quando a chuva vinha e ficava sem hora pra ir embora. Criança gosta de sol e vento. Não gosta de chuva, não gosta de sentir-se presa, ela tem asas, gosta de voar.

Mesmo hoje morando na serra, carrego em meu código genético o mar. Mesmo respirando ares perfumados, guardo comigo o cheiro das algas marinhas.

Ainda chove. Chove sem parar.  Chove o desespero da noiva, a esperança da viúva, a fome do ambulante, chove na cabeça do turista, chove inutilmente no rio. E se aqui chove tanto, nem tanto chove por lá – há secura no sertão, rachaduras na pele, poeira no chão.

Na janela da donzela o pensamento se torna cinza, entre as frestas da veneziana seus olhos competem com a chuva. Não há malandros à procura, somente passos apressados e pretos guarda-chuvas.

Minha alma anda encharcada. O tempo não dá trégua. Durmo e acordo com pingos musicais. E como não tem jeito, não posso me transportar de corpo presente para lugares quentes. viajo em histórias contadas de dias ensolarados guardadas em minha estante.

Ainda chove uma chuva fininha, persistente, que nos convida a ficar debaixo das cobertas. Mas como a angustia não me faz dormir, fico por aqui, em minha rede nordestina, pensando numa maneira de voar até você.

Paulo Francisco


Previsão

Estava tudo premeditado. O dia estava premeditado. A lista de pequenas coisas estava mentalmente guardada. Tudo aconteceria como planejado, se não fosse ela – a chuva.

Chuva de inverno, chuva fininha acompanhada de vento. Olhei pela janela e, não vi viva alma entre a cortina de prata. Voltei para cama e tentei continuar o sonho que fora cortado na melhor parte quando o despertador tocou. Voltei e sonhei.

Premeditar o dia, organizar cada passo. Este não sou eu. Sempre deixo que tudo aconteça por acaso. Não gosto desta organização mental. Desta coisa metódica. Gosto mesmo do improviso. A chuva foi um acaso – ela molhou e manchou o que estava planejado.

E nesta manhã planejada, não pude andar até o parque, sentar no gramado e curtir uma leitura. Caminhar na minha trilha favorita, contemplar o panorama lá embaixo e, me sentir revigorado. Nesta manha acordei, levantei, deitei, sonhei, acordei, levantei e caminhei na insistente chuva de inverno.

Fui andar por aí.

Já na minha rua, a certeza que não teríamos novidades colhidas pelas janelas abertas em dia de sol. Quase todas estavam cerradas, as mais curiosas se permitiam um entreaberto tímido. Nenhum cão solto se atreveu acompanhar meus passos fortes e espalhador de chuva entornada. Ainda em minha rua, nenhum pássaro a cantar, nenhum gato no muro, nenhum olho mais comprido a me vigiar. Estava só.

Caminhei em ruas vazias de gente; caminhei em ruas cheias de histórias. Parei diante do amarelo transformado em verde da casa de dois andares. Tornei-me um errante que a cada passo, descobria o que já existia e, por tantas vezes, ignoradas pelos passos apressados.

Já não mais chovia, raios de sol criavam, em pequenas poças, as cores do arco-íris. Já não estava sozinho. Os meus passos se confundiam com outros apressados.

Tinha premeditado tudo, menos a chuva inesperada. Tinha tudo guardado em minha mente. Todos os horários; todos os afazeres. Quase tudo foi levado pela chuva; quase tudo foi substituído; quase tudo desmanchou-se como papel crepom. Quase tudo.

Ainda me restou o fim da tarde. E, nele, o que foi premeditado acontecera. Pude ver a transformação do claro para o escuro; pude contemplar a lua alaranjada; pude sentir o calor humano; pude ouvir: eu te amo.





Paulo Francisco

Lá fora está chovendo




Desenhei nuvens porque não havia sol.  Chovia longe, podia vê-la enfeitando as montanhas, cortinando a paisagem verde num prata cintilante.  Era assim que ela chegava até mim - numa lenta dança sensual, agitando seu véu cinza, acariciando o mundo.

Enquanto eu ficava preso em meu quarto parado à janela, numa reflexão própria de quem está perdido, ela sem medo algum, chegava molhando a terra, carregando sementes, criando caminhos, engolfando tudo.

Aprendi a desenhar flores ainda criança. Depois, foram as árvores que enfeitavam a minha tela branca. Montanhas, sol, nuvens, pássaros e caminhos sinuosos complementavam os meus pensamentos. Desisti de desenhar paisagens ainda garoto.  Troquei por algo mais abstrato que somente eu entendia. Não conseguia desenhar a chuva. Não conseguia acompanhar os seus traços. Ela sempre manchava a minha pintura.

Nas abstrações de meus traços, nas cores fortes e brilhantes, na incerteza do que era belo, criei à mão livre, o meu caminho confuso. Nunca consegui caminhar numa linha reta – sempre ficava nauseado e caía na escuridão. Sou mais feliz e mais resistente nas paralelas sinuosas e curvilíneas.

Hoje, a minha tela se manchou com os respingos da chuva. As cores se misturaram e formaram imagens não criadas por mim. Foram figuras que me remeteram ao tempo de criança, onde a bruxa era a personagem central e a megera tinha o poder de destruição.

A chuva continua. A tela já não tem mais uma imagem nítida. Transformara-se em uma mancha escura. As cores se misturaram e a paisagem existente escorreu para o chão.

Hoje, eu acordei com o barulho da chuva no telhado. Permaneci em meu quarto e desejei o sol. Tentei desenhar uma paisagem primaveril, mas a chuva a transformou num borrão.

Voltei a desenhar.

Desenhei o sol mesmo havendo chuva.



Paulo Francisco



Iluminados




















Para Waldir e Verônica





Os meus vizinhos fabricam velas. São velas artesanais e de uma delicadeza ímpar. São velas que iluminam os nossos olhos pela beleza e aquecem as nossas almas pela ternura mostrada. Os meus vizinhos fabricam velas com amor.

Quando acabava a luz em minha casa, era uma diversão em teatro de sombras. Brincávamos com os pássaros, os lobos, as bruxas e tantas outras personagens criadas pelas nossas mãos infantis. A parede era a tela inventada, com imagens surgidas num aprendizado em sorrisos e suspiros.  Gargalhávamos pra espantar o que em nós estava escondido.

Quando ela chegou, as velas coloridas estavam acesas, a mesa posta e o meu amor aquecido em chamas dançarinas. Foi assim, o jantar que preparei para aquele primeiro encontro em minha casa. Vivemos uma noite de sonhos e delírios, registrados em sombras gigantes e tremuladas nas paredes da casa  -  noite que guardamos com carinho, depois de nossos desencontros em tardes de verão e passarinhos.  Transformamos, mais tarde, as chamas do amor em luminosidade afetiva. Dormimos, hoje, na mesma rede como dois amigos.

Quando cheguei ao sertão sergipano, estranhei o caminho, a luz da lua iluminava os nossos corpos cansados e pesados pela areia fina e branquinha que cismava em cobrir os nossos pés  estrangeiros. O céu daquele lugar era mais iluminado por estrelas azuis do que em qualquer outro lugar que eu tenha passado até então. Luar do sertão e chão de estrelas cantadas por grilos, sapos e corujas – cancioneiros nunca mais esquecidos.

 Ao chegar à casa de minha avó, sorrir com a luminosidade criada pelas lamparinas. O luar do sertão lavou-me em poesias guardadas. Passagem, em minha vida, iluminada pelo carinho de quem me amava sem me pedir nada em troca, a não ser um cheiro pela manhã, à tarde e à noitinha. Cheirinho guardado na alma de quem ainda crescia e dormia na rede com maestria.

Quando a luz acaba por aqui, não ouço aqueles gritos de decepção e nem tampouco a gritaria saudando a sua volta. Há um silêncio soturno de uma decepção tecnológica. Não há mais o teatro, suas paredes são construídas de plasma ou de led – não há mais sombras tampouco dedinhos infantis em telas inventadas.

Ontem, a luz foi embora no meu bairro lá pelas nove da noite e só voltou de madrugada, indo embora logo em seguida, só voltando de verdade no meio do dia seguinte.  Aproveitei pra iluminar a minha casa com velas aromáticas e brincar com a lua, que estava linda e grávida. Ela invadiu meu quarto, e nele, não permiti as chamas inventadas. Banhei-me de poesia lunar até ela se esconder por de trás das montanhas. Ainda posso tê-la no meu céu marinho em noites abandonadas. Nunca estarei só em minha varanda enquanto ela existir. Lua-amiga, lua-guia.

Quando criança, pedia pra que não apagassem a vela enquanto eu estivesse acordado, gostava de vê-la dançando na parede e movimentando aquele ambiente cinza e flutuante. A chama invadia a minha imaginação de garoto que gostava de inventar os seus medos e segredos.

 Os meus vizinhos, Waldir e Verônica, fabricam velas de amor. São velas coloridas e enfeitadas com laços de fita, e que muitas das vezes, dá dó em acendê-las. Mas, se não acendê-las, elas perdem o seu verdadeiro motivo que é iluminar e aromatizar uma noite mágica e apaixonada.

Às vezes eu me pergunto, se eles são bruxos; se eles põem uma porção mágica à parafina ao fabricar suas peças. Mas, como sou um eterno romântico, prefiro imaginar que as velas só ficam prontas de verdade em noites de lua cheia, quando suas almas unidas, exalam o aroma de suas paixões, impregnando-as com as cores da vida.

Os meus vizinhos fabricam velas de amor, e eu as acendo em noites cálidas e infinitas.


Paulo Francisco