Observador



















Aqui tem camaleão. Ando em trilhas amenas para ver planícies e pequenos montes. Adoro fazer caminhadas pequenas que não me estressam e que só me fazem bem. Nada de caminhadas longas, fatigantes. Não gosto de sofrer – gosto de ter prazer e não dor. Só faço trilhas na certeza de um final com vista tipo cartão postal. Se começo uma trilha e no meio do caminho percebo nuvens chumbadas, não insisto. Paro, espero e, caso as nuvens não sejam passageiras, eu retorno. Haverá dias melhores. Não vou arriscar a possibilidade da desilusão de ver o caos e não o belo.

Na minha última caminhada, encontrei muitas espécies de aves e de insetos. Cores diversas em flores e folhas. Nas pedras e troncos, répteis. Resolvi brincar de pesquisador e fiquei parado por um tempo observando com mais detalhes um camaleão, ou seria a fêmea do camaleão? Mas acabei descobrindo que era ele ou ela que estava me observando. Segui em frente.

Eu sou assim: prefiro observar a ser observado. Às vezes até deixo que pensem que estão me olhando, mas na verdade, sou eu quem os observa.

Quando estudante, numa reserva em uma região de Minas Gerais, observei uma família de primatas por um bom tempo. Enquanto os outros batiam o rio à procura de larvas de odonatas e efemerópteros, fiquei pra descansar e acabei tendo esta grata surpresa. Adorei ver aquela família tomando água na beira do rio e se divertindo – ganhei o dia.

Tem famílias que são tão lindas que eu fico a admirá-las por muito tempo.

Quando moleque, li na Seleções, que a loba alfa se passa por macho, fazendo um falso pênis de sebo, quando o chefe da matilha se ausenta. Tudo isto para preservar a sua família. Depois, descobri outras façanhas no reino animal.

Quantas mulheres não fazem o mesmo, para defender a prole ou lar?

Nós, humanos, mesmo com toda a civilidade, ainda carregamos comportamentos de uma vida selvagem.

Aqui em casa, por exemplo, tem o camaleão.

Ele muda de cor e de nome conforme a luz do céu.



Paulo Francisco
















Além dos seus cílios



Andava pelo meio-fio num equilíbrio invisível entre o limite da calçada e a rua de paralelepípedo. O vento, fabricado pelos carros velozes, empurrava meu corpo e meus pensamentos em todas as direções. Éramos leves. Com os meus braços abertos, equilibrava-me como um trapezista no arame sem a rede de proteção em busca de emoções. Viajava em silêncio num mundo circense.

Gostava de inventar.  Inventava e acreditava piamente no que inventava. Eu era um moleque ¨inventador¨ de histórias. Muitos não acreditavam nelas, as chamavam de mentiras. Fazer o quê? Se eles não tinham a alma leve e os seus olhos não alcançavam além de seus cílios. Os meus pinçavam nuvens, abanavam o vento.

Acordei numa manhã de domingo acreditando que estava apaixonado pela menina mais bonita da escola.  Invenção que durou todo o ano letivo em bilhetes apaixonados e anônimos jogados, na hora do intervalo, em sua pasta cor de rosa. Mas quando chegaram as férias a paixão passou a ser outra. Não tinha tempo para bilhetes e esperanças. Minhas mãos não mais desenhavam corações, elas construíam ilusões em varetas de bambu e papel de seda.  Tomava banho de sol em lajes alheias e em campos de futebol.

Talvez, eu tenha te inventado num final de tarde de verão, ou talvez, você se tenha inventado para mim num final de noite fria no mês de abril. Mas agora, nada disso importa, pois, nessa história inventada, a verdade se perpetuou às dezoito horas de um agosto agitado e quente. Voltaria a ser criança em brincadeiras e histórias inventadas.

Queria ser um moleque mergulhador, daqueles que andam com armaduras no fundo do mar. Pouco depois, troquei de ambiente, tirando o pesado escafandro dourado por um capacete supostamente mais leve -  transformei-me num  astronauta solitário, um feliz habitante lunar, um andarilho gravitacional. Acho que parei ali, na lua, e nunca mais voltei de lá.  Sou de lua, sou da lua, aluado e apaixonado pelo universo além do infinito. Sou companheiro de São Jorge e caço estrelas.

Escolhi, num dia de céu marinho e de lua cortada, uma estrela e a batizei com o nome dela.  Estrela companheira, estrela minha.

 Hoje, quando a saudade aperta até sufocar, inclino minha cabeça para trás, procurando-a no infinito azul, e quando a encontro, eu respiro longamente pelos meus olhos chorosos. Sou assim: um  ¨inventador¨ de técnicas que aliviam as  dores da saudade que porventura surgem por aqui. Saudade dói. Saudade é triste. Saudade mata, definha, maltrata, alucina. Saudade que traz felicidade, não é saudade, é lembrança. Ela chega é vai embora como a neblina matinal.

Quando ela vem me visitar escondida, meio gata, meio brisa, sem dizer-me um nada sequer, eu a pressinto na pele.  Meu coração sempre dispara quando algo está pra acontecer. Ele sempre acelera à sua presença. Mesmo que somente em meus pensamentos.


Ontem, voltei a ser um equilibrista sem sombrinha, um equilibrista de meios-fios de ruas pavimentadas por paralelepípedos ásperos e chorosos.  Equilibrei-me diante da vida. Fui para um lado, fui para o outro. Caminhei num vai e vem invisível, num vai e vem cadenciado por uma brisa morna e sedutora.

Ontem, voltei a ser um inventor de coisas improváveis. Inventei uma maneira de desconstruir coisas de pouco valor em poeira cósmica.  Ontem, inventei de ser mágico. Só os mágicos desaparecem com coisas impossíveis.




Paulo Francisco

Sonho meu


Sim, eu sei que a paisagem muda a cada instante visto.  Sentado em minha cadeira de palha, à sombra de minha varanda, percebo-te, percebo-me, percebo que estamos cada vez mais silenciosos. Estamos mais calados, mais monossilábicos.   Verdadeiramente estamos cada vez menos. Cadê o sorriso no olhar a cada encontro casual? Cadê a esticada de lábios, as pálpebras fechadas e o suspiro em uma fração de gozo, simplesmente por termos a certeza da presença do outro? Cadê!?

Estamos morrendo? Estamos desaparecendo a olhos vistos?  De certo que sim. Mas não agora. Agora, neste instante não, não estamos. Eu sinto que não.

Sim, a paisagem muda a cada segundo vivido.  Mas ainda vejo da minha varanda, a construção de sonhos.  Sinto a presença de Deus no voo dos pássaros.  De quando em vez Ele assopra em meus ouvidos sons divinos. Canções. Canções cantadas e tocadas por arcanjos. Você nunca os escutou? Ah, claro que sim... Foi você que me ensinou a ouvi-los.

Não vamos deixar que o tempo desgaste aquilo que preservamos por tanto tempo – a nossa cumplicidade. Sejamos cúmplices até a morte. Morte certa e ingrata.

Venha, senta aqui ao meu lado, observe comigo aquela construção. Veja como os pássaros passam velozmente próximos as nossas cabeças. Você viu que a roseira tem um novo botão? Nascerá certamente a rosa vermelha mais bonita de todas. Mais bonita que a rosa do Cartola, que a rosa do Vinicius ou a rosa do Chico. Sim, nascerá a rosa mais linda do mundo. Tão linda como o seu nome: Minha Rosa, minha Rosa querida.

Se sou um sonhador!? Claro que sou! Sonho sempre. Talvez eu morra sonhando. Morra pensando ser um passarinho.

Ah, deixa tudo por aí... Venha sentar-te perto de mim... Misture seus dedos aos meus. Acompanha a minha respiração; siga os meus olhos e perceba o movimento das nuvens. Abraça-me! Venha logo me abraçar bem apertado.

Não se queixe, os meus também estão brancos. Gosto de olhá-los e pensar que prateamos juntos; que enrugamos juntos; que fomos os descobridores de cada mancha em nossas costas.
Ah, meu amor não durma agora. Abra os olhos, veja-me. Sinta-me. Eu estou aqui, não irei há lugar nenhum.  Estarei sempre aqui perto de ti.

Hoje, os nossos não ligaram. Mas ontem também não... Qual foi a última vez que telefonaram? Tudo isso!? Devem estar ocupadíssimos com os meninos. Lembra como ficávamos quando eles eram pequenos... Só tínhamos tempo pra eles...

Você sabe quem são essas pessoas a nossa volta? Não reconheço nenhuma delas.  Engraçado, de repente a nossa casa se encheu de gente estranha... Quem é este que me segura pelo braço?

- Quem é você?

- Sou o seu enfermeiro Seu Carlos...

- Enfermeiro!? Não estou doente... Pra onde me leva? Deixe-me aqui com a minha esposa...

- Agora o senhor tem que voltar para o quarto... Os seus filhos já estão chegando...

- Meus filhos? Eu tenho filhos?

- Sim, eles chegarão logo...

Você sabia querida, que tive um sonho horrível. Acordei assustado. Sonhei que você já não estava mais aqui pertinho de mim... Bobagem, você nunca deixaria o seu velho, não é mesmo!?.Boa noite querida. Tenho que ir...


[Acordei todo suado. Corri ao espelho e repeti uma dúzia de vezes: Eu me chamo Paulo, Paulo!]






Paulo Francisco

Bicho-grilo





Na primavera os rios correm felizes. Disse a frase olhando para um pequeno rio enfeitado por pétalas coloridas.  A água seguia num fluxo cadenciado, fazendo dos gravetos e rochas os seus instrumentos musicais. O riachinho acompanhava o canto macio da mata, carregando folhas e pétalas coloridas que dançavam na sua superfície, enquanto que meus olhos brilhavam no reflexo da lâmina d´água.

Fiquei ali parado, ouvindo, tentando me integrar aquela diversidade de imagens e sons.  Deixando o vento levar o meu cheiro. Aceitando de olhos fechados, os vários cheiros que chegavam as minhas narinas.  Ainda de olhos fechados tentava reconhecer aquela mistura da natureza, mas quase não conseguia, pois o meu coração estava acelerado e a minha respiração estava intensa – ainda continuava com a cadência urbana, não tinha me despido por completo da poluição de todos os dias.

 Mais tarde segui a trilha acidentada identificando o passado: Os meus olhos seguiam o voo do capitão do mato com o seu azul brilhante e de outros lepidópteros não menos brilhantes; Eu tentava identificar os pássaros nas copas das árvores, meus olhos tentavam encontrar o inesperado, algo que transformasse o meu passeio num dia inesquecível. Ainda não tinha me dado conta que o passeio já era uma transformação, algo que eu não esqueceria e que meus olhos clicavam para dentro da minha alma.

Segui em frente. Sabia onde eu queria chegar. Já tinha traçado o meu caminho e, talvez por isso, a sensação enganosa do óbvio me entristecia. Mas não era bem assim. A cada passo, a cada movimento, uma paisagem viva enfeitava meus olhos e alegrava a minha alma. Eu estava enganado. Tudo era lindamente grande – um espetáculo único.

As teias de aranha rendavam algumas árvores e as folhas devoradas por hexápodes as transformavam em únicas com suas nervuras expostas. A arte natural criada por seres complexos e estranhos. O feio também tem mãos mágicas.

As formigas, o cupinzeiro, as vespas negras, os pequenos lagartos, as epífitas e seus inquilinos, o âmbar escorrido do caule, os cipós trançados, os cogumelos nos troncos apodrecidos, os raios de sol invadindo a tramas das copas das grandes árvores e chegando ao solo em tons suaves, faziam desse meu passeio, quase descompromissado, numa verdadeira obra de arte.

Meus passos estavam lentos, meus olhos e ouvidos estavam mais aguçados.  O bicho-pau estava lá entre os gravetos secos e a enorme esperança se confundia com as nervuras das folhas verdes. Entre a trama dos galhos, pequenos olhinhos castanhos me acompanhavam à distância – eram Micos curiosos, talvez mais de uma família - Já não estava mais sozinho em meu caminho.

Continuei no meu rumo traçado. Cheguei ao topo da montanha. Encontrei o inesperado. Olhei para o horizonte e vi a certeza da existência, a dualidade da vida desenhada numa tela gigante e abstrata.


Deus jogou as tintas e deixou que elas escorressem livremente por essa tela chamada mundo.


Paulo Francisco

Oscilante



Tudo que eu mais queria nos finais de tarde era a certeza de uma noite tranquila. Nem sempre elas foram cravejadas de estrelas, nem sempre havia lua em minha retina. Tudo era possível quando o que se tinha era a obscuridade da incerteza.

- Quando o seu pai chegar ele vai saber das suas travessuras de hoje!

Pronto, minha alma paralisava ao ouvir a ameaçadora frase. Ela ficava ecoando em minha cabeça, nocauteando minhas ideias e travessuras futuras. Esperava sempre o pior no final do dia.  Passava contar com a sorte. Nunca ganhei nada em nenhum tipo de jogo. Mas, às vezes, era agraciado pela piedade materna – ela fingia que tinha se esquecido de tudo. A minha noite voltava a ter brilho. E o ciclo se repetia: Acordava destemido e entardecia temeroso.

Cresci com as travessuras do dia e os medos no final de tarde e, a cada centímetro alcançado, novas categorias de travessuras e medos surgiam em minha vida. Envelheci sendo travesso; envelheci adquirindo novos medos, mesmo depois de ter parado de crescer.

Tinha medo o que causaria, em minha casa, uma nota vermelha em matemática. Depois, foi o medo da própria matemática da vida. Nunca soube calcular direito o outro. Fui reprovado muitas vezes nessa categoria.

Tinha medo dos caminhos incertos. Deparava-me com bifurcações sombrias sem nenhuma indicação por onde seguir – sofria antes de prosseguir. Depois, foi o medo de não haver mais tais encruzilhadas e tudo ser uma eterna e monótona caminhada monocromática. Sempre odiei o tédio, a rotina. Sempre procuro novos itinerários, novas paisagens, até mesmo a aridez do deserto.

Quando a conheci, tive medo da minha certeza de ser ela a mulher da minha vida. A certeza era minha e não dela. Destemido, segui em frente. Foi bom enquanto durou, mas foi terrível quando acabou. O ciclo continuava em minha vida.

Travessuras e medos amorosos fazem parte da vida? Da minha com certeza. Nada foi muito calmo, nada era pura magia. Um dia sim, outro não.

Certa época da vida eu enfrentei o terrível medo, atravessando uma lança afiada em seu peito, só para tê-la em meus braços. Achei que seria uma aventura de poucos dias, mas com o medo estendido no chão, derrotado pelas minhas mãos, continuei com aquela travessura por alguns anos. E deu no que deu: Num fim de tarde o medo ressuscitou-se e eu fugi pra nunca mais voltar.Destemido? Não, simplesmente irresponsável. Característica comum aos jovens tímidos e medrosos como eu. Fui à busca de noites mais tranquilas.

Encarava aquele flerte como uma coisa impossível e distante. Enganei-me ao pensar que a distância era o obstáculo pra nunca nos encontrarmos.Travessura de um peregrino à procura de uma flor rara. Ainda continuo procurando-a em jardins e pântanos, em dunas e montanhas. Hei de encontrá-la. 

Passam os dias, passam os meses, passam os anos, e tudo que eu mais quero e espero é a certeza de um final de tarde tranquilo e a esperança de que a noite esteja empolada de estrelas, mesmo que elas estejam somente no céu da minha boca.




Paulo Francisco