Questão de preferência



Aqui só falta você. Procuro entre todas as flores, no vaso de vidro, no centro da mesa, uma que me chame a atenção. Não a encontro. O florista esqueceu-se de por junto ao ramalhete a linda flor.

Toda vez que vejo um vaso de flores, fico olhando pra encontrar entre todas a que me desperte mais a atenção. Sempre tem uma que nos atrai. Entre botões fechados e rosas abertas, uma é mais aveludada, tem maior brilho. As rosas ainda em fase de desabrochamento, ainda se encontram num tempo transitório, ou seja, o que será dela ao desabrochar por completo? Uma rosa perfeita, aveludada, ou uma rosa com sua cor empalidecida perante as outras? Só o tempo dirá! Prefiro as que já estão formadas, com suas pétalas perfeitas, viçosas. Gosto da rosa desabrochada e cheirosa. Tem que ter perfume; tem que ter brilho; tem que me despertar desejo.

Procuro sempre entre as cores a que me chame mais a atenção. Confesso que o azul é minha cor predileta. Mas não posso negar que ao ficar manchado pelo vermelho de uma boca, fascina-me.

Tenho amigos que odeiam mulheres com batom. Eu adoro. Gosto de ser pintado por ela. Gosto de mulheres enfeitadas; de unhas pintadas e que provoquem arrepios e contrações.

Não sou diferente deles. Eu, pelo menos, confesso. Não preciso de um botão de rosa na lapela. Quero uma rosa pronta em meu travesseiro.

Não sou diferente de ninguém. Gosto do azul, de uma boca vermelha, de rosa perfeita – quer dizer, já desabrochada.

Prefiro e, não é vantagem nenhuma, frutas maduras – são mais suculentas e sua doçura é mais envolvente à fruta verde no pé que demora muito pra amadurecer. Não tenho tempo nem paciência pra cuidar e esperar o seu amadurecimento. São lindas de se ver, mas são duras de morder. Prefiro uma fruta na mão a várias no cesto.

Não sei por que eu escrevi este texto. Talvez seja porque aqui só falte você.



Paulo Francisco

A curiosidade quase matou o gato



Comigo-ninguém-pode. Lembro-me como se fosse hoje. Numa tarde qualquer estava agarrado às barras da saia de minha mãe, sempre atento as suas conversas – adorava ouvir os adultos e, era sempre expulso por um deles com a seguinte frase: "Vai brincar menino, isto não é conversa de criança!" - Pois bem, estava grudado em minha mãe voltando pra casa depois de uma visita a uma amiga dela, quando outra amiga a encontra no meio do caminho e seguiram juntas a conversar. Um papo dali, outro papo daqui e, eu atento, não deixava escapar uma vírgula.

Quando passamos por um velho conhecido terreno baldio, ouvi de uma delas: ¨ Como pode, um terreno deste abandonado, sem uma cerca e cheio de mato.¨ a outra: ¨ um perigo! Olha! e está cheio de comigo-ninguém-pode, um veneno!

Fiquei com o nome da planta manchada em minha cabeça e com aquela palavra saltitando em minha mente: Veneno! Toda vez que passava próximo ao terreno ficava a namorar aquelas folhas largas e convidativas, até que uma tarde resolvo saber se era verdade que planta era venenosa e mastiguei-a com gosto. Pra encurtar esta história, foi o único dia que uma travessura minha não acabou em chineladas, mas em compensação me fizeram vomitar até as tripas. Fiquei mole por uns bons dias e ainda ouvi sermão de todo mundo. Senti saudades da chinelada Era mais rápido e curava logo.

Eu era assim, o revés da obediência. Ouvia que não podia e aí que eu queria. Tomava banho de chuva, fugia à noite pra brincar na rua, andava de trem até a quinta da boa vista, ia ao cinema depois da aula.

Hoje já cumpro mais com os meus deveres e obrigações. Mas a curiosidade em querer saber das coisas sempre foi o meu fraco. Por este complexo sentimento caí em algumas ciladas.

Hoje me comporto com cautela. Olho a folhagem pintada e no máximo mostro-me em desejo. Estou mais cuidadoso – gato escaldado. Descobri que o fogo aquece, mas também, pode queimar; a água sacia, mas pode afogar; nem todo vento é brisa.

Assim vou levando minha vida de curioso. Observo primeiro, estudo um pouco e depois sim ponho a mão. Nem tudo que está à vista é pra ser tocado. Nem tudo que vem ao vento é pra ser agarrado.

Aqui em casa, por exemplo, as miúdas e graciosas marias-sem-vergonha estão sempre florindo. São estudadas pela medicina. Enfeitam. Mas quem disse que não são tóxicas?






Paulo Francisco

Dependência




Não espere de mim mais do que eu tenho pra dar. Quando a professora, no final da aula, entregava o boletim, eu ficava tenso, angustiado, tornava-me pedra pra não revelar a minha aflição. Não queria um dez, não queria um nove, não queria nada além do possível, bastava-me um boletim azul, pra eu sair daquele transe mortificado. Vermelho respingado, azul manchado. Tinha, tínhamos, naquela época, vergonha de uma nota abaixo da média.

Na vida, tentei ter o meu boletim sempre com notas azuis, mas como a escola do mundo é pra sempre, é quase impossível não manchá-lo com alguns respingos vermelho e amarelo.

Como recebíamos o boletim fechado num envelope pardo, o suspense era maior, principalmente quando era entregue pelas mãos da Professora com um ar sério ou de reprovação. Um sorriso dela era o sinal de que não tínhamos ido mal.

Quando cheguei a minha casa e vi seu rosto fechado, seus olhos cabisbaixos, seu andar arrastado, percebi que estávamos abaixo da média.  Nossa relação estava no amarelo e há qualquer deslize chegaria ao vermelho. E chegou. Fui reprovado sem o direito de recuperação.

Não entendia a compreensão do amor. Era difícil pra mim, o doar, o aceitar, o resignar. Não entendia que tínhamos que caminhar numa via de mão dupla. Não decodificava; não abstraía. Tudo era erroneamente um todo. Não compreendia as etapas da vida, seguia numa linha reta, sem parada pra descanso, sem parada pra reabastecer a máquina, sem uma revisão de tempos em tempos. Não revisava a vida.

Ah, fui reprovado tantas vezes na disciplina do amor que quase desisti da matéria. Passei um bom tempo afastado da classe. Achava que não era possível acompanhar toda metodologia aplicada. Era complicado decorar todos aqueles termos, conceitos e definições no tempo exigido pelo sistema.

Mas como seguir sem a compreensão da base da vida? Como entendê-la se não vivê-la? E se vivê-la, como aceitá-la?

Tornei-me autodidata. Segui o caminho do construtivismo.

Sigo num aprendizado sem fim. Entre erros e acertos, defino-me, conceituo-me e não chego e nem devo concluir-me, pois a cada dia, há na vida, elementos novos, pra colocarmos a prova. Somos a nossa própria experiência.

Experimento-me.

Não exija de mim, o que eu não tenho para dar.

Se vermelho ou se azul, com ou sem segunda época, o boletim é da responsabilidade de cada um.




Paulo Francisco

Drama





Estou velho demais pra morrer de amor.  Mas caso eu venha morrer, por agora, que seja então de amor vivo. Que eu esteja recostado em seu ventre, sentindo a cadência de sua respiração, o calor de seu corpo, que as suas mãos estejam em minha nuca e seus lábios nos meus.

Não me conformava com o drama de alguns amigos quando a relação escorria pelo buraco negro da vida. Considerava tudo aquilo uma perda de tempo. O que adiantava o desespero da perda, a não ser pra perder totalmente a razão.  O amigo L entrava em desespero, quase enlouquecia por causa de um abandono.  Descobria tardiamente que aquela que o dispensara era a mulher de sua vida. Bebia e chorava o inevitável, chorava e bebia a triste descoberta, bebia, chorava e me alugava madrugada adentro com suas lamurias e desesperança.

Eu era tão bom ouvinte como um bom bebedor de cerveja.  Enquanto pra ele era desespero, pra mim era diversão.  Sabia que em menos de um mês o camarada me ligaria pra comemorarmos a sua nova paixão, a verdadeira mulher de sua vida surgira das cinzas de seu sofrimento. E saíamos pra comemorar o seu novo estado emocional.  Pelo menos ele não só dividia sua tristeza – as alegrias também eram comemoradas em copos gelados de cerveja.  Não sei como ele está agora. Perdemo-nos no meado dos anos oitenta.  Mas eu nunca esqueci suas esquisitices amorosas.  

Mas não era só ele que fazia drama por uma paixão mal acabada. Havia outros marmanjos com a mesma síndrome do abandono.  Eles me ensinaram a sofrer calado.

Eu também sabia sofrer de amor. Um bom abandono amoroso tem que ter sua dose de desespero, sua dose de sofrimento, sua dose de lágrimas e soluços. Um bom abandono amoroso tem que ter dia nublado, guarda-chuva preto e travesseiro.

Falava com o vento na esperança de obter respostas.  A saudade era tão imensa quanto o vazio no peito.  A dor da perda nunca foi branda – era dor de membro amputado. Tentava viver na normalidade, mas as noites se tornavam longas e os amanheceres frios. Era uma saudade doída, uma dor de alma, uma dor de nunca mais. Sentia-me abandonado pela sorte.  Um desafortunado temporário.

Achava que nunca iria esquecê-la. E como viver assim? Como viver sem a presença daquela que jamais pensei em perder? Não sabia.  E por não saber inventava-me; transformava a dor e sonhos em histórias terceirizadas.  Dramas grafitados em pedaços de papel ruim. A cada abandono, nascia uma tela abstrata e cinza. A cada abandono, uma morte esquisita. Eu também sabia ser dramático. Ouvia músicas tristes e bebia uísque.  Ah, eu também sabia morrer de amor.

Mas o tempo passa, ensina a virar a página.

Hoje, eu estou velho demais pra morrer de amor. Prefiro morrer de outra coisa e vivê-lo até o fim.


Paulo Francisco


Empatado







Não quero mais brincar. Estava sentado num banco do parquinho observando o nada. Estava ali para não fazer e nem pensar em coisa alguma. Descompromissado comigo mesmo, ali fiquei, olhando sem ver. Mas uma frase aguda me despertou daquele transe provocado: ¨- Não quero mais brincar! Não quero mais brincar!¨ Todos cercaram o menino que de braços cruzados insistia na frase. Ele estava irredutível, era árvore que não envergava, e seu comportamento, fez o grupo se espalhar – eram folhas soltas em redemoinho. E ele, ali, no centro, cabisbaixo de braços cruzados. O que estava fazendo? Pensei. A brincadeira vai acabar por causa dele? Me perguntei.

Mas na vida tudo se resolve. Os meninos voltaram para o menor e tentaram convencê-lo de que não deveria fazer aquilo, porque senão eles iriam brincar de outra coisa e ele não entraria. O menino resmungou algo e balançou a cabeça numa positiva, entregou a bola que estava sendo esmagada pelo seu pé esquerdo. Ele era o capitalista – dono do capital.

Quase que instantâneo todos gritaram de felicidade e correram para as extremidades daquele campo improvisado. Soltando palavras de ordens:

- Aí, ¨cavera¨! Fica na direita... Não! Não! Gigante ( o menor da turma)fica aqui mais próximo da área. Vamos lá! Tava quanto o jogo?

Alguém grita:

- Quatro a três!

A discussão agora começa por causa do placar:

- Não mesmo! Tava empatado quando o verruga parou o jogo. Ri com o apelido do moleque e pude perceber que seus dedos tinham umas três verrugas grandes.

- ¨Cavera¨! ¨cavera¨! O menino magro e comprido corre em direção de quem lhe chama, gritando: falai aí meleca! Cai na gargalhada: meleca!? Pensei.

Eram os apelidos dos mais engraçados que já ouvira: tatuí, barata (estes eu ri e muito, eram dois artrópodes das classes crustácea e insecta, respectivamente), caroço, e muitos outros,mas dos tantos apelidos o mais engraçado foi quando olhei para o moleque com o calção laranja e que correspondia ao singelo nome de guerra: ¨Cheroso¨. O suor escorria em bicas de sua cabeça, as placas grossas acinzentadas em seus cotovelos e joelhos indicavam banho uma vez por semana, não vou comentar das unhas - impraticáveis. Tive que rir.

Todos felizes jogando depois de chegarem a conclusão de que era um outro jogo. Começariam do zero a zero. Sai dali, rindo, com a democracia afetiva entre eles.

Pensei: Não quero mais brincar! Ou começamos do zero a zero ou não jogo mais.


Paulo Francisco