Bordado


Para Chica

A pele é o recobrimento do nosso corpo. Não consegui continuar lendo sobre o órgão. Parei na primeira frase. Fechei o livro e em seguida olhei para as minhas mãos e meus braços. Toquei o meu rosto e lentamente cheguei ao pescoço e ao tórax. Constatei pela palma da minha mão a idade chegando pela desidratação da epiderme. Exclamei sorrindo:

Estou ficando velho!

- E a alma? E a alma? -perguntei-me repetidamente na penumbra de meu quarto:

- Também se desidrata? Também fica velha e marcada?

Fiquei com a dúvida nas pontas dos dedos. Achei que não conseguiria continuar escrevendo esse texto. Como falar da pele sem mencionar a alma? Não estou aqui escrevendo um texto didático para que os alunos de ciências entendam a importância das camadas da pele e seus anexos. Não é a minha intenção desenvolver tal artigo – este eu deixo para o Professor.

Senti-me um inútil e totalmente travado. Mas a ideia de escrever sobre a pele não saiu de minha cabeça tão facilmente. De quando em vez, o assunto vinha a mim com uma interrogação:

-Vai escrever ou vai desistir?

Já tinha desistido da tal ideia quando entro, antes de dormir, num dos blogs de Rejane e leio: ¨Corremos riscos de na vida, não sabermos conviver com os riscos que nos chegam na pele ou na alma...¨

- Cacete! É isso!

Exclamei ao terminar de ler o texto dela. Não poderia falar da pele sem falar da alma. Não dá pra falar de tato sem falar do sentimento de dentro. Eles estão interligados. São únicos. A sentença escrita por Rejane não saía de minha mente. Riscos na pele e na alma.

Conviver com esses riscos, com os vincos existentes. Entender as rugosidades estampadas na derme. Saber traçá-las com sabedoria.

Ajeitei o travesseiro, virei de lado pra dormir para mais um dia.

Hoje, quando cheguei para trabalhar, percebi com mais clareza os ¨riscos¨ de Rejane. O aceitar ou não a idade existente pela derme e pela alma.

A pele é o recobrimento do corpo. A alma, certamente, é o seu recheio. E os riscos que chegam a ambos, são as marcas merecidas de uma existência. Certo, Chica?

Paulo Francisco

Memória II








Chegava morto de fome. Sabia que ali não me faltaria um rango.  Ele já me olhava com um sorriso na cara. A larica era maior que o meu estômago, as garfadas eram maiores que a minha boca. Era um tempo que eu tinha fome e sede do mundo. Dormir só depois de lutar muito contra o sono – não queria desperdiçar o meu tempo com sonho; queria vivê-lo de imediato.

Ontem recebi um amigo em minha casa. Ao abrir a geladeira ele riu e exclamou:

- Sua geladeira parece um coco!

 Totalmente distraído perguntei-lhe por que e ele me respondeu as gargalhadas:

- Pô camarada, só tem água!

Rimos. Fomos parar num bar pra matar mais a sede do que a fome.

Hoje quando a larica chega, não tenho mais aquele amigo pra matá-la. Corro ao restaurante e bato um rango daqueles.

Hoje senti uma saudade enorme daquele tempo. Não pela vida desregrada, mas por ter ele perto de mim – meu grande amigo que nunca me desamparou nem mesmo nas minhas piores devassidões.


Paulo Francisco

Memória






O cair da tarde veio cinza. O céu se transformara numa tela abstrata onde o azul-chumbo predominava. Os nossos corações aceleravam a cada trovão, a cada relâmpago. Num instante, a chuva chegou pesada e assustadora. Abraçamos-nos e ficamos quietos, paralisados, sentido as nossas respirações. De repente o silêncio rompeu os nossos medos e somente o gotejar da calha do telhado nos remetia ao terror de minutos antes.

Olhamos para o céu e nos deparamos com milhares de estrelas azuis num pano de fundo azulado quase negro. Sorrimos ao ouvir a voz doce de quem nos quer bem:

- O jantar já está na mesa!

Corremos para a cozinha e a vimos: a mesa posta decorada por um vasinho de flores miúdas.

Naquele dia sentimos medo e alegria. Um medo passageiro e uma alegria pra vida toda.

Hoje, quando ouço trovões e relâmpagos, lembro-me daquele dia e penso: ¨Daqui a pouco estrelas num céu azul quase negro¨.

Mas quando olho para a mesa do jantar já não vejo mais o vasinho de flores.



Paulo Francisco

Intimidade




Quem canta seus males espanta. Nunca cantei para espantar nada e nem ninguém. Até porque, só canto debaixo do chuveiro. Ou baixinho na ponta da orelha de alguém.

A professora de música odiava quando errávamos o Hino Nacional. Logo percebemos que em vez de liberdade, retumbante, se disséssemos liberdadi ou retumbanti, ela parava tudo e começava a bravejar até espumar como um cão raivoso. Adorávamos vê-la nervosa. Ação de crianças inocentes e felizes.  Sempre tinha um  ¨anjinho¨ para errar o Hino só para vê-la daquele jeito.

De repente ouço uma voz macia quase angelical cantando na ponta da minha orelha. Acordei num espreguiçar demorado e amoroso.  Tem música que dá sambinha do bom. Tem música que funciona melhor em duo. Aí eu canto, canto sim. Canto e declamo Cecília porque certamente tenho motivo para cantar.

- Paulo, você foi ao show de fulano?

- Não!

- Paulo vai ao show de sicrana?

- Não, não vou não...

Não sei se estou menos musical, ou se estou mais seletivo.  Prefiro ouvi-los na ponta da minha orelha ou num duo testemunhado pelas estrelas e corujas.

Sei que tudo isso é fase.  Como está sendo fase o fato de não estar escrevendo tanto.  Mas dizem que o silêncio também é música para muitos. Talvez seja também para mim.

Adoro estar no meu canto ouvindo o seu canto na ponta da minha orelha. Se quem canta seus males espanta, nesse meu caso, quem canta me encanta em desejos. Agora, agorinha mesmo, ouço as canções que ela deixou para mim. Talvez eu não esteja menos musical. Talvez eu só não queira misturar as estações.


Paulo Francisco

Acumulador






Abri a gaveta e levei um susto daqueles. Já não me lembrava de tantas coisas guardadas. Sempre tive a mania de guardar aquilo que achava ser tesouro. Mas depois de certo tempo   percebia que o ouro escondido era ouro de tolo. E, aí, ia tudo para o lixo. A vida é assim mesmo, pelo menos para mim. O que pensava ser de suma importância  - e talvez o fosse no momento em que o guardei - não passava de lembranças fúteis, ou ilusão de ótica de um inocente.

Antes, guardava os meus pertences em caixas de charutos. Sim, eram objetos de extrema importância para um moleque que adorava brincar. Bolas de gudes, figurinhas, soldados de chumbo, piões afiados e cacarecos mil.

Cresci e continuei guardando coisas. Guardava não somente os concretos, mas os surreais e os abstratos também. Substitui a caixa de charutos por câmaras pulsantes para guardar o invisível.

Hoje, quando abri a gaveta e descobri tantas coisas guardadas, percebi-me um acumulador de emoções. Não sei dizer se isso é uma patologia como daqueles que não se desfazem de nada.  Mas, patológico ou não, tenho, certamente, que me livrar daquelas que de uma maneira ou de outra não me fizeram bem.

 Passei a vasculhar as gavetas falando comigo mesmo:

- Retratos com dedicatórias amorosas são demais!

-  Como pude guardar tais blasfêmias?! Vão para o lixo!

- Bilhetinho em guardanapo... COMO ISSO VEIO PARAR NESSA GAVETA?

Dizem por aí o que os olhos não veem o coração não sente. Verdade. Já nem me lembrava desse tempo de amores e de ódios.  Mas dizem também que o tempo cura. Outra verdade. É impossível não cair na gargalhada com tudo isso.

Depois de uma tarde de arrumação, as gavetas ficaram livres para acúmulos futuros. Você pode estar se perguntando agora: ¨ Como acúmulos futuros?¨ Eu respondo. Respondo rindo, respondo des-ca-ra-da-men-te: Quero mais que as minhas gavetas estejam sempre cheias de emoções. Mesmo que sejam de amores impossíveis. Amores que se transformam em raivas momentâneas. O que não quero de jeito nenhum é gaveta vazia. Coração vazio, alma amortecida. Não, não mesmo. Quero todas as facetas, pontiagudas ou não, de um amor.

Às vezes, sou obrigado a guardá-los na gaveta. Guardo antes mesmo de começar. São amores impossíveis; amores bandidos. Amores difíceis de começar.  Tem um, em particular, que estou quase o transportando de mim para a gaveta.  E mesmo guardado, ainda sim, tenho medo dele.  Porque não sei o que será.

Paulo Francisco