Teoria







Ah, essa coisa de amar que transcende a razão! Que dilata pupila, que contrai pupila, que nos deixa embriagados de sonhos. Se você tem  um amigo que chora pela perda de um amor e não consegue entender esse sofrimento masoquista, você teve a sorte ou o azar de nunca ter amado ou de ainda não ter sofrido por sua causa.

Meu amigo bêbado no meio da rua deserta de uma madrugada fria de uma segunda-feira  qualquer:

- Paulo, eu amo aquela mulher com todas as suas estrias e celulites...

Uma amiga enlouquecida ao telefone reclamando em prantos a ausência de um camarada que nunca lhe deu atenção:

- Eu não entendo porque ele não quer nada comigo. Eu faço tudo que ele me pede.

A mãe de uma amiga, desesperada em ver a filha sofrendo de amor:

- Ela está assim há duas semanas, sem falar com ninguém, trancada no quarto, desde o último telefonema do namorado.

Era difícil entender tanta irracionalidade de alguns amigos.  Como chorar por um namoro que acabou? Como ficar às moscas por causa de uma decepção? Não, não entendia as mazelas amorosas.  A racionalidade e a praticidade estavam intactas em minha massa cefálica – a ínsula e o estriado estavam parcialmente inativos. Usava-os somente para o sexo e outros componentes químicos comuns naquela época.  Eles estavam mais próximos que o danado do amor.

 Os batimentos cardíacos batiam naturalmente no compasso fisiológico humano. O sangue trafegava em artérias e veias oxigenando o meu corpo forte e alheio ao verbo amar e ou aos seus derivados.  O que eu sentia não era amor, era tesão sem amar.

Demorei pra ser dependente do vício amar. Demorei pra entender que o coração não tem culpa da dor de amar. É o cérebro, o grandioso cérebro culpado desse vício bom. 
Que o coração, coitado, só responde em batidas apaches o que o cérebro lhe envia.

E quando esse dia chegou, tornei-me comum, igual a qualquer um. Eu sorri, chorei e me decepcionei também. Tornei-me refém do prosencéfalo e de outras regiões cerebrais. Nunca mais unicamente racional! Nunca mais somente prático! Tornei-me um irracional amoroso; um sonhador amoroso, um teorético amoroso. Um amoroso simplesmente.

Uma amiga do trabalho me disse que tinha certeza de que ela ama e de que já amou, mas não tinha certeza de  ter vivido um grande amor. Não entrei no mérito da questão.

 Trouxe para casa a sua interrogação e revivi alguns amores.

Como era bom desejá-la. Como era bom imaginar tê-la. Era tesão provocado por um amor ainda guardado.  Pensei: vivi um grande amor. Foi um amor a passos curtos e reveses.

De repente ela estava em minha vida, desconstruindo todos os meus conceitos, ditando o meu ritmo, deixando-me vesgo de amar. Foi um grande amor com certeza.

Talvez a amiga do trabalho não tenha vivido um grande amor. Talvez, esse grande amor ainda não chegara. Ou talvez ela nunca se permitisse viver esse grande amor. Talvez, o seu prosencéfalo ainda não tenha sido totalmente explorado.

Eu já vivi grandes amores. E espero vivê-lo outras vezes. Porque pra mim todo amor é grande. É um mix de razão e loucura, de paixão e serenidade, de céu e terra, de vento e fogo.

Andam dizendo por aí que o vício de amor tem cura. Mas quem disse que eu quero largar dessa dependência? Ainda corre sangue em minhas artérias e veias. O meu coração ainda anuncia em batidas aceleradas a alegria de amar. Ainda aguento algumas decepções e tenho ainda a esperança na alma e lágrimas pra chorar.

Ah, essa coisa de amar que transcende sempre a minha razão!



Paulo Francisco

Bordado


Para Chica

A pele é o recobrimento do nosso corpo. Não consegui continuar lendo sobre o órgão. Parei na primeira frase. Fechei o livro e em seguida olhei para as minhas mãos e meus braços. Toquei o meu rosto e lentamente cheguei ao pescoço e ao tórax. Constatei pela palma da minha mão a idade chegando pela desidratação da epiderme. Exclamei sorrindo:

Estou ficando velho!

- E a alma? E a alma? -perguntei-me repetidamente na penumbra de meu quarto:

- Também se desidrata? Também fica velha e marcada?

Fiquei com a dúvida nas pontas dos dedos. Achei que não conseguiria continuar escrevendo esse texto. Como falar da pele sem mencionar a alma? Não estou aqui escrevendo um texto didático para que os alunos de ciências entendam a importância das camadas da pele e seus anexos. Não é a minha intenção desenvolver tal artigo – este eu deixo para o Professor.

Senti-me um inútil e totalmente travado. Mas a ideia de escrever sobre a pele não saiu de minha cabeça tão facilmente. De quando em vez, o assunto vinha a mim com uma interrogação:

-Vai escrever ou vai desistir?

Já tinha desistido da tal ideia quando entro, antes de dormir, num dos blogs de Rejane e leio: ¨Corremos riscos de na vida, não sabermos conviver com os riscos que nos chegam na pele ou na alma...¨

- Cacete! É isso!

Exclamei ao terminar de ler o texto dela. Não poderia falar da pele sem falar da alma. Não dá pra falar de tato sem falar do sentimento de dentro. Eles estão interligados. São únicos. A sentença escrita por Rejane não saía de minha mente. Riscos na pele e na alma.

Conviver com esses riscos, com os vincos existentes. Entender as rugosidades estampadas na derme. Saber traçá-las com sabedoria.

Ajeitei o travesseiro, virei de lado pra dormir para mais um dia.

Hoje, quando cheguei para trabalhar, percebi com mais clareza os ¨riscos¨ de Rejane. O aceitar ou não a idade existente pela derme e pela alma.

A pele é o recobrimento do corpo. A alma, certamente, é o seu recheio. E os riscos que chegam a ambos, são as marcas merecidas de uma existência. Certo, Chica?

Paulo Francisco

Memória II








Chegava morto de fome. Sabia que ali não me faltaria um rango.  Ele já me olhava com um sorriso na cara. A larica era maior que o meu estômago, as garfadas eram maiores que a minha boca. Era um tempo que eu tinha fome e sede do mundo. Dormir só depois de lutar muito contra o sono – não queria desperdiçar o meu tempo com sonho; queria vivê-lo de imediato.

Ontem recebi um amigo em minha casa. Ao abrir a geladeira ele riu e exclamou:

- Sua geladeira parece um coco!

 Totalmente distraído perguntei-lhe por que e ele me respondeu as gargalhadas:

- Pô camarada, só tem água!

Rimos. Fomos parar num bar pra matar mais a sede do que a fome.

Hoje quando a larica chega, não tenho mais aquele amigo pra matá-la. Corro ao restaurante e bato um rango daqueles.

Hoje senti uma saudade enorme daquele tempo. Não pela vida desregrada, mas por ter ele perto de mim – meu grande amigo que nunca me desamparou nem mesmo nas minhas piores devassidões.


Paulo Francisco

Memória






O cair da tarde veio cinza. O céu se transformara numa tela abstrata onde o azul-chumbo predominava. Os nossos corações aceleravam a cada trovão, a cada relâmpago. Num instante, a chuva chegou pesada e assustadora. Abraçamos-nos e ficamos quietos, paralisados, sentido as nossas respirações. De repente o silêncio rompeu os nossos medos e somente o gotejar da calha do telhado nos remetia ao terror de minutos antes.

Olhamos para o céu e nos deparamos com milhares de estrelas azuis num pano de fundo azulado quase negro. Sorrimos ao ouvir a voz doce de quem nos quer bem:

- O jantar já está na mesa!

Corremos para a cozinha e a vimos: a mesa posta decorada por um vasinho de flores miúdas.

Naquele dia sentimos medo e alegria. Um medo passageiro e uma alegria pra vida toda.

Hoje, quando ouço trovões e relâmpagos, lembro-me daquele dia e penso: ¨Daqui a pouco estrelas num céu azul quase negro¨.

Mas quando olho para a mesa do jantar já não vejo mais o vasinho de flores.



Paulo Francisco

Intimidade




Quem canta seus males espanta. Nunca cantei para espantar nada e nem ninguém. Até porque, só canto debaixo do chuveiro. Ou baixinho na ponta da orelha de alguém.

A professora de música odiava quando errávamos o Hino Nacional. Logo percebemos que em vez de liberdade, retumbante, se disséssemos liberdadi ou retumbanti, ela parava tudo e começava a bravejar até espumar como um cão raivoso. Adorávamos vê-la nervosa. Ação de crianças inocentes e felizes.  Sempre tinha um  ¨anjinho¨ para errar o Hino só para vê-la daquele jeito.

De repente ouço uma voz macia quase angelical cantando na ponta da minha orelha. Acordei num espreguiçar demorado e amoroso.  Tem música que dá sambinha do bom. Tem música que funciona melhor em duo. Aí eu canto, canto sim. Canto e declamo Cecília porque certamente tenho motivo para cantar.

- Paulo, você foi ao show de fulano?

- Não!

- Paulo vai ao show de sicrana?

- Não, não vou não...

Não sei se estou menos musical, ou se estou mais seletivo.  Prefiro ouvi-los na ponta da minha orelha ou num duo testemunhado pelas estrelas e corujas.

Sei que tudo isso é fase.  Como está sendo fase o fato de não estar escrevendo tanto.  Mas dizem que o silêncio também é música para muitos. Talvez seja também para mim.

Adoro estar no meu canto ouvindo o seu canto na ponta da minha orelha. Se quem canta seus males espanta, nesse meu caso, quem canta me encanta em desejos. Agora, agorinha mesmo, ouço as canções que ela deixou para mim. Talvez eu não esteja menos musical. Talvez eu só não queira misturar as estações.


Paulo Francisco