Planando




A sensação era de estar flutuando. Quantas vezes achei que podia voar. Não o voo migratório dos pássaros em busca da sobrevivência, mas de suas penas ao vento, sem direção, num flutuar empurrado por correntes termais. Um voo desconhecido e sem medo.  Não, nada de ser piloto de aeronaves, astronautas em viagens estelares. O meu céu estava em minhas mãos e a minha viagem sempre fora solitária em minha retina. Já andava com as minhas próprias pernas, os meus mergulhos eram infinitos e as minhas asas não eram de cera.

A sensação era de estar sempre flutuando. Um flutuar sem direção, sem controle, uma viagem aflita e sem chão. Dias, meses sem a menor previsão de aterrissagem.  Não era mais o voo da pena. Era apenas a cegueira da realidade. Era a incerteza no olho do furacão, no epicentro da indignação. E aquele céu que sempre estivera em minhas mãos, se desfez entre os meus dedos, se perdera de minha retina, e as estrelas nele existentes apagaram-se para sempre.

 O azul da pérsia que outrora estava cravejado de sonhos se fora tingido de negro, engolido pela boca da bruxa.

Ainda sonho; ainda flutuo. Mas a intensidade é outra. Não é mais um voo longo, ou um flutuar sem direção. E nem poderia. Os pés calejaram-se e os braços não se sustentam por tanto tempo no ar. Mas, mesmo assim, ainda sonho e flutuo num céu desenhado pelos meus olhos miúdos e menos fúteis.


Hoje, pela manhã, acordei com a sensação de estar pisando no ar. O meu corpo estava mais leve e os meus olhos desenhavam nuvens. Não era um voo de sonhos; um flutuar serenado. Não havia estrelas e o céu escureceu como num eclipse total. E quando a lua se foi, meus olhos enxergaram uma tarde azul e fresca. Uma nova sensação brotou da alma. O vento chegou à varanda da minha casa trazendo-me novos sonhos, novas cores. Um sentimento que há muito não sentia.  A sensação é de estar flutuando na direção certa.

Paulo Francisco

Leituras




 Os sinais não estavam claros. Não conseguia acompanhar o que diziam. A minha curiosidade limitou-se em imaginar os possíveis diálogos entre eles.  LIBRAS não faz parte do meu vocabulário. Eles sorriam, conversavam descontraidamente.  Distraía-me naquele universo de mãos, olhos e gestos aflitos. Tornei-me o Maxwell Smart  no mais velho disfarce da leitura do jornal sentado num café. Tentava saber o que eles tanto falavam naquela esquina cinza e morna. Os jovens são destemidos, alheios ao perigo. De repente se espalharam, desintegram-se aos meus olhos.  Fiquei com a interrogação, o disfarce e um vazio imenso no coração. Não gosto de história incompleta.

Os sinais de trânsito sempre me fascinaram. Ficava olhando pela janela do carro as placas indicativas. Contava os quilômetros rodados não pelo velocímetro, mas pelas placas à beira da estrada.  Proibido isso, proibido aquilo.  Altura máxima, largura máxima, velocidade máxima.  Siga em frente. Vire à direita. E de repente ele não diminuiu a velocidade, passou da curva e eu do para-brisa.  Acordei na maca de uma clinica.  Não gosto de histórias com tragédias, mesmo com final feliz.

A bandeira vermelha sinalizava perigo. Não entrávamos na água.  Mas não arredávamos os pés da areia. Jogávamos carta e molhávamos os nossos corpos na margem da praia. Mas se a vontade era de estar dentro d’água, saiamos à procura de uma bandeira branca – soube que agora é verde.  Ela chegou molhada com uma bandeira vermelha debaixo do braço.  Achei estranho. Não sabia que ela militava. Tinha acabado de chegar de uma manifestação no Centro da cidade.  Eu estava em casa  assistindo a tudo pela TV.   Já estava agorafóbico e ainda não sabia. As histórias de pânicos nunca foram as minhas preferidas.

Os sinais nunca eram claros para mim. A matemática não me pertencia, não me unia. Não havia interseção nos meus caminhos de sonhos, Os colchetes estavam nas minhas roupas e não no meu raciocínio. A realidade e o devaneio caminhavam juntos. Estava sempre somando. Demorei a entender ou a aceitar a subtração. E quando ela chegou passei a entender as manipulações formais: as lineares, as abstratas, as elementares e a universal. Contido ou não contido eis a questão. E naturalmente eu não pertencia aos delírios dela.  Tornamos-nos conjuntos vazios. Não nos pertencíamos mais. Também não gosto de histórias sem final feliz.

Mas foi um sinal em sua coxa que me chamou atenção. Adoro histórias de mistério.


Paulo Francisco


Samurai




Em tardes molhadas, repito os bolinhos de chuva do passado.  Não falhava. Tarde chuvosa, cárcere privado. Sessão da tarde e jogos de tabuleiro para diminuir a agitação represada.

O fim de semana foi de céu zangado e muito choro. Leituras curtas, muitos filmes e a certeza do bolinho de chuva com canela e açúcar no final da tarde. Mato a minha ansiedade num seppuku adocicado. E na despensa o indispensável para tardes chuvosas se transformarem em açúcar e haraquiri.

Neste final de semana que passou, a chuva deixou de ser confete, para ser transformar em grade. Fiquei preso em casa olhando o mundo pela tela do computador. Impossível sair de casa com relâmpagos e trovoadas. Restaram-me os doces, os romances, as comédias e as ficções.  Fazer o quê? Se ela resolveu permanecer em minha janela. Nada de banho de chuva, de uma corridinha até o ponto, da campainha tocando. Tornei-me uma ilha cercada de chuva.

Mas hoje foi diferente.  Amanheceu menos aguado. Nublado, mas sem chuva. Saí num caminhar sem setas. Queria ver gente e cores; precisava sentir o cheiro do mato, ouvir o vento açoitando as folhas, mesmo que por pouco tempo – a chuva estava prevista -  eu não queria me encharcar de surpresa. Voltei pra casa menos seco e mais assustado.  Júpiter anunciava a sua fúria a toda força.

Tornei-me novamente ilha. Um prisioneiro de Zeus.

Era quase um tratado. Em dias de chuvas fortes nada de escola. Estávamos perdoados por dormir até mais tarde.  O melhor da chuva era poder, depois dela, molhar uns aos outros numa festa coletiva. Festejávamos a nossa liberdade depois de dias de cárceres privados. Os barquinhos de papel previamente prontos com as folhas de cadernos eram colocados na correnteza formada rente ao meio-fio. Pura diversão.

O sol sempre chegava tímido, dourando as coisas, mostrando o que antes estava escondido: caracóis deslizando nas folhas verdes, sapos pulando de um lado para o outro, assustados com tanta gritaria.  As janelas se abriam adornadas por lençóis, tapetes ou qualquer outra coisa que precisasse de ar e de sol.  As moças gordas, e também as magras, debruçavam-se nas janelas junto às coisas espalhadas - havia esperança iluminando seus olhos e corações.


Hoje, em tardes molhadas, não tenho a mesma paisagem, não repito os ritos do passado, exceto pelos bolinhos de chuva e poesias.

Paulo Francisco

Passatempo





Os nécessaires dos meus amigos estão mais pesados. Eles estão ficando calvos e grisalhos. Disfarçam a genética rapando a cabeça. Mas o disfarce tem vida curta. Logo-logo, o desenho de suas calvícies brota adornado por penugens brancas. Para os mais incomodados é necessário o cortador de cabelo na cartucheira. A qualquer momento eles sacam a máquina e engatilham o nível desejado para a satisfação de seus olhos, e em poucos minutos estão lisos como uma bola de bilhar.

Entrei no carro da Valéria e fui logo esfregando as minhas mãos na cabeça raspada do Manoel. Ele ri e compara a minha atitude com a da sua filha.  Estávamos indo para a casa de mais um careca – o meu compadre. Não me senti um estranho no ninho. Estava com o cabelo bem baixo. Dias antes, cheguei ao cabeleireiro ( também de cabeça raspada) logo dizendo:

-  Adriano, baixinho, baixinho mesmo, quase máquina.

Ele riu e exclamou:

- Vou usar a tesoura... depois não terá volta!

O encarei pelo espelho e confirmei sorrindo, acenando a cabeça. Meia-hora depois estava mais leve alguns gramas.

 Saquei da mochila a minha boina e segui em frente.  Uso a boina não para esconder e sim para aparecer. Tenho algumas – quase uma coleção. Entendo as mulheres com suas bolsas e sapatos.  Também entendo seus nécessaires abarrotados.

Não uso máquina para cortar cabelo, nem aparelho elétrico para barbear-me – sou lenhador da minha própria face. Foram feitos com a navalha as cicatrizes existentes.  No meu nécessaire não há eletrônicos.

Quando entrei em seu carro, ela olhou-me e disse:

- Ficou bom, mas gosto dele maior... Adoro sua mecha branca. É tão charmosa...

Ri e respondi:

- Ele cresce

Pensei:  Ainda bem que a genética ajudou-me nesse aspecto. Ou seriam os hormônios?


Seguimos pela estrada com a bagagem mais leve.


Paulo Francisco

Colecionáveis







As minhas coleções nunca foram adiante. Tentei, e como tentei ter uma coleção. Comecei com álbuns de figurinhas de jogadores das seleções mundiais, mas nunca completei um álbum sequer e nem conheci ninguém que tenha conseguido a tal figurinha carimbada.  A coleção de moedas até que me deu certo prazer por um tempo, mas elas ficavam condicionadas em latas de leite em pó e acabei perdendo o interesse em tê-las escondidas.

Depois, tentei uma que me desse status de colecionador, tirei todos os selos das cartas de meus pais guardadas há décadas e quase levei uma surra.

Olhava as coleções de carrinhos de meus amigos e invejava-os com tamanho cuidado com os seus brinquedos de metal. Os meus eram pra brincar, e assim o fazia, nenhum era perfeito. Todos apresentavam quilômetros e quilômetros rodados pelo quintal e ruas barrentas.

Mais tarde colecionei gibis, mas terminei doando pra alguém mais interessado em lê-las do que em tê-las. Depois, foram os clássicos da literatura. Guardava-os, depois de lidos, como  objetos de coleção. Esses foram doados pelas mãos de minha mãe, numa mudança repentina. Eu fui para um lado e José de Alencar, Machado de Assis, Aluísio de Azevedo, Eça de Queiroz, Manoel Joaquim de Almeida, acompanhados por Nelson Rodrigues, Fernando Sabino, Raquel de Queiroz, Luis Fernando Veríssimo, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Stanislaw Ponte Preta e muitos outros, para o outro lado – o lado do desconhecido. Nunca soube onde foram parar.

Uma coleção pra ter seu valor, tem que estar dentro de normas incríveis de conservação. Seguir regras de colecionador não é pra qualquer um.  Tem que estar intacta, dependendo da coleção, nunca violada. Então, eu ria e muito, quando meu primo se referia como coleção as suas revistas da playboy e afins. Revistas mais que usadas e lambuzadas. Um armário lotado de beldades do mundo todo. Eu me contentava com os calendários guardados no fundo da gaveta – já tinha o bastante pra ser chamado de colecionador.   
       
Tive várias outras coleções: canetas, isqueiros, chaveiros - e nenhuma terminou comigo. As caixas entomológicas devidamente etiquetadas foram surrupiadas por colegas da Faculdade.

Ainda tenho guardado, quase que por um milagre divino, resquícios de uma coleção de miniaturas de dinossauros. Não contei, mas vão pra mais de cem. Estes passaram pelas mãos de João, meu filho, mas ele não se interessou em tê-los sobre a guarda de meus olhos. Perdi alguns exemplares na distração e guardei, mesmo assim,  alguns degolados e pernetas. Ainda não foram extintos totalmente.

Matheus, o filho de Alessandra, quando vem aqui em casa, gosta de brincar com as peças. Chato mesmo é quando ele dana a me perguntar o nome de cada um deles. Aí o dinossauro pega! Tenho que recorrer aos livros, pois já não me lembro do nome de todos.

Mas o que eu gosto mesmo é de colecionar amizades.

Têm algumas amizades que se tornam raras, daquelas que se guarda em papel especial e se conserva com muito carinho.

Por outro lado, têm as que tentamos em vão. Não seguem adiante. Desandam. Mas quando isso acontece é porque as peças não eram verdadeiras; não eram dignas de serem colecionadas como amigos – alguns conseguem ficar na categoria de colegas.

Já fui enganado muitas vezes por réplicas perfeitas. Jurava que eram genuínas e depois de certo tempo, apareciam falhas imperdoáveis pra uma coleção tão importante: um defeitinho de caráter aqui, um egoísmo ali, a pintura que se desgasta e logo aparece a decepcionante cor fora da série original. Não tem nada pior que uma peça desbotada. As minhas têm cores fortes e vibrantes.

 Geralmente, eu não jogo fora, mas deixo-as de lado, num outro compartimento – o dos conhecidos.

 Eu tinha uma réplica tão perfeita, mas tão perfeita, que a coloquei na primeira prateleira da coleção de amizade, achando que fosse original. Mas, quando a peça foi mudada de lugar, começou mostrar-me certas linhas de conduta que jamais uma peça original de minha coleção teria. Mas, mesmo assim, não querendo acreditar que tivesse sido enganado por tanto tempo, deixei-a no mesmo lugar por um bom período – uma espécie de quarentena. Pois, uma coleção, não pode ser contaminada por agentes estranhos. Tem que estar sempre de olho pra não perder todas as peças de uma coleção tão rara como essa. Então, resolvi tirá-la da quarentena e a deixei num compartimento inferior – o dos replicados.

As minhas coleções nunca foram adiante. Exceto a da amizade. Posso até perder uma peça, mas, no lugar da perdida, sempre tem outra de maior valor. Até porque, este tipo de coleção, tem poucas peças. São raras. Aparecem num largo espaço de tempo.

Ah! Aquela peça que me enganara por um bom tempo. Dei um jeito nela. Exterminei-a por completo de meu convívio.

Eu não tenho e nem quero ter uma coleção de traidores.

Paulo Francisco