Presença

 


Acordei como nunca acordara antes. Acordei com você grudada em minha cabeça. A boca, mesmo silenciosa, denunciava-me pelo cinismo exposto. Os olhos, intrometidos, brilhavam numa felicidade delatora. Coisa rara, raríssima, levantar-me leve, num flutuar quase astronáutico.

Lembra?! Quando ficávamos grudados, pernas entrelaçadas, numa conversa sem fim na penumbra do quarto? Ouvíamo-nos numa delicadeza quase fraterna. Quase. O desejo tatuava nossa pele antes do sumiço da lua. Era inevitável!

Gosto dessas lembranças adocicadas – açúcar seduzido pelo amaro do chocolate. Registro de que tudo ou quase tudo valeu a pena. Que ficou coisa boa, mesmo com a despedida turbulenta e sofrida. Foi necessária...eu sei. Talvez, tenhamos demorado para perceber que definhávamos a cada negação; que não estava tão bom como antes; que estávamos incomodados com a comodidade criada. Mas mesmo assim, eu agarrava a danada da esperança com garras de rapina. Sempre fui um sonhador. Meus sonhos jamais venceriam a tua realidade. Sonho apaga-se, dilui-se. Realidade constrói, defende.

As brochadas eram certas. A lua não aparecia mais inteira. A janela não era mais única. A visão não era a mesma. Havia um abismo no meio do caminho que engolia tudo que aparecia. A delicadeza estava perdendo força. O respeito estava ruindo. O sarcasmo estava apontando na esquina. No meu caminho ventava música. O seu... o seu era sólido, asfáltico, com placas indicadoras, com destino certo. O meu chão era forrado de esperança, o seu era firme, batido, reto.

Hoje, acordei como nunca acordei antes. Ao olhar para o outro lado da cama, percebi que ele não estava mais vazio. Que o fantasma que dormia comigo, desintegrou-se com a luz do dia.

A despedida fora inevitável. Hoje, eu sei...

Engraçado! Acordei com você grudada na minha cabeça.

 

Frente fria.





- A névoa chegou de repente contrariando aquela manhã de dezembro. Era quase verão. Depois da bruma, o céu molhou o chão com uma chuva fina e gelada. No lugar dos shorts, das sandálias e das camisetas estampadas, surgiram tocas, botas, casacos pesados, guarda – chuvas pretos e sombrinhas coloridas. A névoa chegou encolhendo o dia, expulsando o sol, aguando os caminhos e, sobretudo, paralisando o coração.

O corpo enrijeceu-se diante da nebulosidade inesperada. Defesa de quem, até há pouco tempo, acreditava no brilho e no calor humano. Não é fácil o desapontamento. Parecia ser tão simples, bastavam um abraço, um beijo, um afago, que tudo se tornaria leve e transparente. Mas a vida é mais que isso: Há um mundo lá fora, há gentes; há intemperes; há labirintos complexos e muitos deles infinitos.

Depois do silêncio, a avalanche é certa. E depois dela, o caos é inevitável. E depois de tudo isso, as opções são poucas: ou mantém-se o emaranhado construído, ou desata-se cada nó encontrado.

O monossilabismo, de quando em vez, invadia o silêncio que já há muito tempo habitava aquele espaço. Seriam os nós desatando? Ou seria a construção aflita da inevitável desordem?

Isolados, transformaram-se em ilhas - cercadas de angustia e desconfiança. Não havia caminho, não havia ponte. Não havia horizonte. O desalento corroía aos poucos, deixando oco o que antes era sonho.

De repente, numa manhã de sábado, o sol desaparecera, dando lugar a escuridão e a vertigem. O silêncio, fora invadido por músicas quase tristes. O vento chegara miúdo e frio. Trazia consigo cheiro de barro enfeitado de infância.

A música era suave e antiga; os olhares, não. Os corpos juntinhos transcendiam – cúmplices de desejos guardados. O chão de madeira acolhia os pés descalços em passos delicados. A penumbra completava a paisagem que despertava, em ambos, sentimentos esquecidos.

De repente a manhã se fora, o sol reaparecera e a escuridão se dissipara dando lugar a lucidez. A realidade era maior que os sonhos. A despedida fora silenciosa. Sem gritos, sem porrada... simplesmente uma despedida melancólica.

- Que pena, parecia que tudo se inverteria...

- Que nada! Hoje, são amigos.


Astral





Olhar para o céu e tentar adivinhar como será o dia é uma mania que tenho desde a infância. Dia molhado, cárcere privado. Dia ensolarado, moleque endiabrado. Descobri, já adulto, que a estação que mais gostava não era o verão e sim o outono. O nosso outono. Estação amena que traz calmaria e algumas surpresas, como o sol do meio dia e a bruma depois das seis. 
Ela era o meu outono. Ela era de abril. Calmaria em manhãs douradas, quentura na metade do dia e aconchego em noites de lua fria. Gostava de saber da sua existência em minha vida; de sentir na minha pele a suavidade da sua.Ela nascera no mês de abril, não poderia ser diferente. Ela era o meu outono tropical.
Às vezes, sinto-me tão bobo. Bobo como um pedaço de papel zanzando, sem rumo, numa ventania surgida de repente; ou como um menino que fica rodopiando sem parar, de braços abertos, até cambalear como um bêbado, de um lado para o outro, só para ter a sensação da leveza da tontura provocada. Às vezes, ou quase sempre, sinto-me desse jeito: bobo por ela.
No jardim, as lantanas colorem o caminho de pedra, ofertam néctar para as borboletas agitadinhas; as aranhas, lentas e famintas, tecem suas falsas mandalas na certeza de novas presas; as cortadeiras seguem os seus caminhos carregando matéria prima para a produção de seus alimentos; As manhãs chegam mansas e silenciosas, os pássaros acordam mais tarde -  adeus horário de verão, já vai tarde!
Depois de sua ida pra nunca mais, tornei-me mais centrado, menos sonolento e porque não dizer mais arisco: voando por aí como as agitadinhas, desviando-me das falsas mandalas e pousando em lantanas multicoloridas. Nesse jardim de outono, as cortinas fecham-se antes do aparecimento da lua e abrem-se após a claridade solar.
Ela já fora o meu outono. Hoje, não é mais!
Olhar para as suas retinas e tentar adivinhar o que está pensando é uma mania adquirida depois de algumas estações. Coisa minha. Coisa de quem nasceu na primavera e é de escorpião.


Clareza



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De repente não a olhava como antes. A paisagem modificou-se depois do temporal. Restaram o corpo molhado e o assombro. Depois de um tempo, tudo voltou a normalidade. A sanidade deu lugar a realidade; o torpor fragmentou-se com a chegada do vento, permitindo então, a visibilidade das recentes cicatrizes marcadas na derme. Definhou-se o sonho guardado.
Enxergá-la por um olhar frio, calculista, sem nenhuma emoção, foi a maneira encontrada para não se cometer nenhuma injustiça. Arrepender-se de certos sentimentos, de certas convicções – jamais! Aos poucos as interrogações eram respondidas  e as certezas tornavam-se sólidas como concreto. Na lâmina da lança surgiu, uma nova esperança. Com o feitiço desfeito, não havia mais o medo.
Um olhar brilhante, ao longe, fazia-se notar. Era a certeza de um sentimento, semeado aos poucos, cultivado por afagos e gestos verdadeiros.
No negrume da noite, a chama azulada da vela enfeitava os corpos. E no levantar e abaixar da chama, pensamentos surgiam revelados pelas pupilas dilatadas, corações acelerados e membros contraídos. Verdades brotavam no olhar como mágica espiralada trazida por anjos. Na ponta da noite, a finitude mascarou o que antes era escuridão. O dia clareou a paisagem, dourou a alma e abraçou a poesia.

Descontínuo





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Era quentura de derreter. Os corpos encharcados suplicavam por uma ducha gelada. Mais tarde, a água escorria pelos nossos corpos quentes na esperança de lavar a salinidade produzida e diminuir a temperatura provocada. Permanecemos por muito tempo agarrados naquele cubículo ladrilhado e aquático. Com os olhos na cor de sangue, voltamos para a cama as gargalhadas, sorrindo de tudo – crianças grandes fazendo amor e arte. Era boa aquela despretensão amorosa. Aproveitamo-nos o máximo o nosso pecado. Pois sabíamos que depois da transa era vida que segue sem pudor – gente grande que na vertical veste-se conforme o tempo.

Era muito bom estar com ela, gostava daquele jeito aberto de dizer-me coisas sérias de maneira divertida; tínhamos tudo para sermos mais que amigos. Quando disse-me rindo, que eu era o seu crusch, fiquei sem saber o que dizer. Pois não sabia o sentido da palavra naquele contexto - desconfiava:

- Eu sou totalmente encanada quando estou numa relação. Se não atende o telefone quando ligo, já vou logo achando que a relação está esfriando, que pode estar com outra. Fico paranoica.

- Xiiii... que coisa... vivo com o celular desligado, não gosto de atender em qualquer lugar... se tivesse uma namorada com esse seu jeito não duraria uma semana...

Risos

- Vai vendo! E você é meu crusch...

Fomos interrompidos e mudamos a conversa, dando atenção as outras pessoas que estavam na sala.
Gostava de estar com ela, da nossa amizade. Mas tem gente que não consegue esperar. Tem urgência. Tornamo-nos fiapos na ponta dos cílios.

Hoje, o céu encontra-se nublado, há vento, mas o barco está vazio.