Estado de ...

 

E quando tudo está uma bosta?!  Acordei num espreguiçar malandro, sem a menor vontade de levantar. Tentei enganar o tempo cerrando os olhos e escurecendo o dia com o lençol amassado cobrindo a minha cara. Fiquei por uns minutos na posição fetal tentando expulsar a minha alma para um outro plano. Queria o levitar do sono; queria um sonho sem me importar com as teorias freudianas ou junguianas – só queria a paisagem de um sonho qualquer.  Precisava, com certeza, era ganhar tempo, mesmo que fosse com um pesadelo que me levasse para longe daquela realidade de merda.

Não funcionou. A realidade estava mais acordada que nunca. Tinha direção certa. A rota estava traçada.

Sentado à beira da cama, cocei a cabeça, contei as manchas antigas encrustadas no assoalho e, por um longo tempo, acreditei que estava sonhando. Mas se fora um sonho, ele acabara no momento em que a água morna batera nas minhas costas. O chuveiro sempre fora meu companheiro nas melhores e piores horas. Não diria o mesmo do espelho. Sempre frio e impiedoso. E foi nele que encarei a verdade.

Aqueci o corpo e tingi a alma com uma caneca de café. Assumi o meu fracasso; assumi a minha solidão e transformei a tristeza em esperança. Rasguei o silêncio com as minhas músicas preferidas. E como um alquimista amador, transformei a bosta em fertilizante.

Gritei:

- Obtuso é o caralho!

Certeza

 


O dia acompanhou a noite e a água continuou a lavar a terra e a alma deslavada dançou nua no acinzentado terreiro. Pés descalços, peito nu e sorriso escancarado. A esfinge que fingia ser uma simples mulher, batia suas asas criando um vendaval. Mas o corpo, quase nu, rodopiava lutando contra o vento que vinha do Sul e a falsa mulher sucumbiu-se, dobrando-se diante da pureza que rodopiava de braços abertos no centro da terra molhada. E a noite recebeu o dia encharcado de esperança.

Sob a lua, sobre nós

 


De repente a lua azul pousa no pico da montanha. A imagem, vista da minha cama, provocou-me um suspiro profundo e uma vontade danada de estar ao seu lado. Pena… estou isolado de tudo e de todos – culpa da peste que não quer ir embora e se aproveita da estupidez humana, que insiste em ignorá-la, para mutar a cada instante.

Sabe aquela canção do Roberto que diz: minha alegria é triste? Pois é, estou assim nesse mundo diferente, cheio de estranhezas e lágrimas. Está bem nem tudo é triste nem tudo é tão estranho assim. A lua azul, por exemplo, é alegria espontânea; o ser mais ranzinza do mundo – que não sou eu - vai esquecer da sua condição de ser chato para admirar essa coisa de Deus.  Hoje, não causa estranheza a ninguém, ver e ouvir um líder de um país regurgitar suas demências e suas maldades. Quem mandou colocá-lo no poder! Não é mesmo?!

Mas esse texto não é para falar de mediocridades. Depois de tanto tempo sem escrever uma linha sequer, não faria isso comigo tampouco com você.

Sim, a lua é merecedora de estar nos poemas de Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Mário Quintana, Vinicius e de tantos outros; ela é merecedora de estar nas canções de Caetano, Gil, Exaltasamba, Chico Buarque e muitos outros.  Ela é merecedora de contemplação em todas as suas fases e cores. Quem não fica paralisado, mesmo que seja por alguns segundos, quando a lua de sangue ocupa o palco celeste? 

Comecei o texto, dizendo que queria estar ao seu lado para contemplar o luar. Comentei sobre a nossa condição atual, do distanciamento imposto, de canções e poetas.

Comecei o texto pensando em você e vou terminá-lo pensando em você.

A lua é cheia, não é azul. Mas ainda assim, aparece sempre linda do meu quarto, provoca-me suspiros e lembranças de ti. Embora não seja um dançarino, arriscar-me-ia alguns passos de bolero com a canção de Adoniran e Hilda Hilst: Quando te achei.

Ah! once in a blue moon... que a expressão não seja verdadeira para nós dois. E que possamos amar na urgência do luar.

Presença

 


Acordei como nunca acordara antes. Acordei com você grudada em minha cabeça. A boca, mesmo silenciosa, denunciava-me pelo cinismo exposto. Os olhos, intrometidos, brilhavam numa felicidade delatora. Coisa rara, raríssima, levantar-me leve, num flutuar quase astronáutico.

Lembra?! Quando ficávamos grudados, pernas entrelaçadas, numa conversa sem fim na penumbra do quarto? Ouvíamo-nos numa delicadeza quase fraterna. Quase. O desejo tatuava nossa pele antes do sumiço da lua. Era inevitável!

Gosto dessas lembranças adocicadas – açúcar seduzido pelo amaro do chocolate. Registro de que tudo ou quase tudo valeu a pena. Que ficou coisa boa, mesmo com a despedida turbulenta e sofrida. Foi necessária...eu sei. Talvez, tenhamos demorado para perceber que definhávamos a cada negação; que não estava tão bom como antes; que estávamos incomodados com a comodidade criada. Mas mesmo assim, eu agarrava a danada da esperança com garras de rapina. Sempre fui um sonhador. Meus sonhos jamais venceriam a tua realidade. Sonho apaga-se, dilui-se. Realidade constrói, defende.

As brochadas eram certas. A lua não aparecia mais inteira. A janela não era mais única. A visão não era a mesma. Havia um abismo no meio do caminho que engolia tudo que aparecia. A delicadeza estava perdendo força. O respeito estava ruindo. O sarcasmo estava apontando na esquina. No meu caminho ventava música. O seu... o seu era sólido, asfáltico, com placas indicadoras, com destino certo. O meu chão era forrado de esperança, o seu era firme, batido, reto.

Hoje, acordei como nunca acordei antes. Ao olhar para o outro lado da cama, percebi que ele não estava mais vazio. Que o fantasma que dormia comigo, desintegrou-se com a luz do dia.

A despedida fora inevitável. Hoje, eu sei...

Engraçado! Acordei com você grudada na minha cabeça.

 

Frente fria.





- A névoa chegou de repente contrariando aquela manhã de dezembro. Era quase verão. Depois da bruma, o céu molhou o chão com uma chuva fina e gelada. No lugar dos shorts, das sandálias e das camisetas estampadas, surgiram tocas, botas, casacos pesados, guarda – chuvas pretos e sombrinhas coloridas. A névoa chegou encolhendo o dia, expulsando o sol, aguando os caminhos e, sobretudo, paralisando o coração.

O corpo enrijeceu-se diante da nebulosidade inesperada. Defesa de quem, até há pouco tempo, acreditava no brilho e no calor humano. Não é fácil o desapontamento. Parecia ser tão simples, bastavam um abraço, um beijo, um afago, que tudo se tornaria leve e transparente. Mas a vida é mais que isso: Há um mundo lá fora, há gentes; há intemperes; há labirintos complexos e muitos deles infinitos.

Depois do silêncio, a avalanche é certa. E depois dela, o caos é inevitável. E depois de tudo isso, as opções são poucas: ou mantém-se o emaranhado construído, ou desata-se cada nó encontrado.

O monossilabismo, de quando em vez, invadia o silêncio que já há muito tempo habitava aquele espaço. Seriam os nós desatando? Ou seria a construção aflita da inevitável desordem?

Isolados, transformaram-se em ilhas - cercadas de angustia e desconfiança. Não havia caminho, não havia ponte. Não havia horizonte. O desalento corroía aos poucos, deixando oco o que antes era sonho.

De repente, numa manhã de sábado, o sol desaparecera, dando lugar a escuridão e a vertigem. O silêncio, fora invadido por músicas quase tristes. O vento chegara miúdo e frio. Trazia consigo cheiro de barro enfeitado de infância.

A música era suave e antiga; os olhares, não. Os corpos juntinhos transcendiam – cúmplices de desejos guardados. O chão de madeira acolhia os pés descalços em passos delicados. A penumbra completava a paisagem que despertava, em ambos, sentimentos esquecidos.

De repente a manhã se fora, o sol reaparecera e a escuridão se dissipara dando lugar a lucidez. A realidade era maior que os sonhos. A despedida fora silenciosa. Sem gritos, sem porrada... simplesmente uma despedida melancólica.

- Que pena, parecia que tudo se inverteria...

- Que nada! Hoje, são amigos.