Anjos da noite




A noite derramava estrelas. Caminhávamos sob a luz da lua. Éramos errantes noturnos viajando em calçadas que choravam sereno. Voltávamos pra casa, exaustos, com o corpo sofrido e a alma feliz. Eram assim nossas noites de finais de semana em bailes nos subúrbios do Rio.

Vivíamos em bando, vivíamos em sonhos, sonhávamos com futuros brilhantes, mesmo que fossem somente sonhos. Não sei o que aconteceu com o grupo que convivi num curto período de minha juventude, fui obrigado a me distanciar por motivos diversos. Também não sei se gostaria de saber o que aconteceu com cada um deles. Prefiro lembrá-los assim, como eu descrevi. Melhor sabê-los desse jeito a saber que cada dor existente em mim faz parte de suas vidas. O passado só é bom ser lembrado quando se vive o inesquecível.

Estava caminhando, numa das minhas madrugadas de insônia, pelas calçadas molhadas de minha cidade, quando avisto um grupo de meninos e meninas caminhado em algazarras vindo em minha direção. Nitidamente pude voltar ao tempo e lembrá-lo com satisfação das minhas noites molhadas de sereno. 

Éramos jovens sonhadores com os pés no chão. Mesmo que este chão fosse forrado de estrelas.


Paulo Francisco

Imagem imaginada







Estava atrasado. Estava muito atrasado. Acordei e nem pude ter a minha preguiça matutina de rolar de um lado pro outro – num susto, já estava pronto e ligando pra Mônica para informar que estava chegando. Mentira! Mas ela já sabe que sou o maior mentiroso pela manhã. Acho que não vou acostumar-me nunca em acordar cedo. Mas o que fazer quando tem gente a nossa espera? Irmos.

Lá fui eu em passos ligeiros, pelo caminho de sempre, quando me deparo com um casal de jandaias. Pensei: Perdão querida Mônica, eu não sei a que horas chegarei.

Apanhei a máquina na mochila e comecei a fotografar o colorido casal.

Gosto das oportunidades que a natureza me oferece. Na minha última viagem, que não foi há muito tempo, aproveitei pra fotografar gente e o que tinha ao meu redor – flores e muito verde.

Quando cheguei, atrasadíssimo, todos estavam me esperando, mas, acreditando na possibilidade de eu não chegar a tempo. Mas cheguei. Aprendi que uma vez atrasado, atrasado e meio.  Não disse o porquê do meu atraso – não era preciso.

Quando o fotógrafo chegava para tirar as fotos de minhas irmãs eu ficava puto. E, não escondia a minha insatisfação com a tamanha desconsideração com a minha pessoa. ¨ Pô!, qualé bacana! Eu também sou filho de Deus!¨  Pensava irritado com tudo aquilo.  Não entendia que as fotos tinham que ser delas e não de um moleque cascorento cheio de machucados nas pernas, braços e, de quando em quando, com um esparadrapo escondendo algum tipo de corte na testa.

 Eram fotos de meninas bonitas para a sua coleção – um tipo de apresentação (book) de seu trabalho. E as minhas irmãs eram lindas e incrivelmente opostas: uma loira de olhos azuis e a outra morena de olhos amendoados. Umas graças de criaturinhas que eu judiava de segunda a domingo. Uma judiação de irmão-capeta que gostava de vê-las chorando e assustadas. Atazanava os juízos delas e de minha mãe. Coitadas!

Não me dava por vencido, a cada foto tirada, uma travessura minha. Catava os galhos secos, pedaços de qualquer coisa que pudesse sujar o plano de fundo da imagem. Quando o camarada percebia, já era tarde - depois do clique, um Paulinho, lá longe, fazendo caretas, carregando um objeto estranho qualquer. Eu era odiado, e com muito gosto, fazia tudo para atrapalhar o tal ensaio.

Minha mãe, coitada, ficava doida pra me pegar, mas, eu corria mais que todos eles. Estava sempre com um olho no padre e outro na missa. Só me sossegava quando resolviam, depois de muito relutarem, tirar algumas fotos minhas, mesmo machucado e revoltado. * ¨ Pouco me importa. Pouco me importa o que? Não sei: pouco me importa.¨   - Era assim que eu me sentia.

Hoje, ando com a minha máquina na mochila e estou sempre clicando algo. Registro tudo. Adoro alguns flagrantes humanos e de coisas estranhas. A galera do trabalho que não gosta muito, mas como tenho que entregar no final do ano um clipe com o povo todo em plena atividade, não perco a oportunidade de me divertir.

Como as pessoas têm medo que registrem o seu lado mais secreto – uma fotografia é um plano, somente um plano de sua existência.

Quando as cópias das fotos chegavam, naqueles objetos estranhos, chamados monóculos, todos nós ficávamos a admirar as imagens de minhas irmãs, sempre, sempre arrumadinhas de cabelos cacheados e vestidos novos. De vez em quando, eu surgia numa foto junto delas – mas já era o bastante pra me deixar feliz. Pois bem, o que eu queria mesmo era sair na foto.

Hoje eu acordei atrasado, e por causa desse atraso, voltei ao tempo de criança quando nunca perdia o tempo do clique do fotógrafo. Coitado!

*Alberto Caeiro






Paulo Francisco

Penumbra




Levantei-me rapidamente para fechar as cortinas. Os raios solares tinham invadido o meu quarto num momento em que eu ainda precisava da penumbra. Não queria enfrentar o dia; não queria ver as cores que brilhavam, certamente, nos olhos de quem já estava de pé. Queria continuar deitado fingindo-me de morto ou de quase vivo. Eu estava triste.

Guardo a minha tristeza comigo e a cubro de carinho. Dou-lhe mimo, acalanto-a, alimento-a com lágrimas e silêncio. Torno-me o seu guardião ou ela de mim. Não a deixo sozinha por um minuto sequer. Preservo o seu egoísmo e não permito que ninguém se aproxime. Tenho medo que a tire de mim antes do fim.

 Quando a tristeza chega, entrego-me sem lutar. Tornamos-nos simbióticos temporários.  Ela usa o meu corpo cansado, enquanto eu a uso para esquecer o mundo. Nutrimos-nos de nós mesmos até a última gota da taça.

Às vezes a danada chega sem avisar e não tem alegria que a afaste de mim. O poeta já dizia que ela não tem fim. Talvez estivesse certo. E por isso, eu a alimento com tudo que há em minha alma, satisfazendo as suas vontades até se cansar de tudo. E ela se cansa – eu sei.

Tem tristeza que é pra sempre. Essa de hoje, já é uma senhora que me visita há anos. Ela se instala, acaricia os meus cabelos, as minhas costas, assopra em meus ouvidos até me deixar com frio. Ela gosta de me ver encolhido – frágil e perdido. Não luto contra. Torno-me passivo e silencioso. Sei que ela vai embora logo. É uma tristeza que vem com o vento e, com ele, vai-se.

Não sei dividir dor quando a sinto. Gosto de dividir flores e alegrias. As minhas dores eu as curo no escuro.
Dizem por aí que a minha tristeza tem nome de saudade. Uma saudade triste. Talvez seja mesmo saudade de algo que foge as minhas mãos, que os meus olhos não a alcançam. Talvez seja uma saudade triste de um tempo que não mais existe. Não sei bem ao certo o que me faz, de quando em vez, cair nessa melancolia de dormir, dormir, dormir. Durmo sem sono – Não sonho. Simplesmente finjo que durmo. Finjo pra enganar o escuro.

Os mais perversos, e são muitos, falam que me escondo da vida em sonos profundos. Não os contesto. Deixo-os pensarem que estão certos. Mas, o que sei mesmo, é que a tristeza chega sem aviso prévio. E da mesma forma vai embora.

Não sou um homem triste. Sou um homem que fica triste. Um homem que chora a tristeza. Mas como aprendi que homem não deve chorar e muito menos ficar triste, choro e fico triste no escuro do meu quarto. Lá fora, só alegria.

Hoje, deixei as janelas e cortinas abertas. Deixei os raios solares invadirem o meu quarto na esperança dela ir embora.

Hoje, eu acordei com medo do vazio.

Paulo Francisco


Doses de mim





Não me cubro em noites de estrelas. A tarde terminou tarde. Vinte horas e ainda era de dia. O céu teima na transparência nessa época do ano. Verão é a estação em que os vampiros dormem mais. Não gosto de acordar cedo, e muito menos uma hora antes do combinado – isso acaba comigo.

Raramente chego atrasado, exceto no trabalho – principalmente no horário de verão.  Combinei às oito. Um bom horário para começarmos a noite.  Mas a distração é o meu pecado maior. Esperei o azul marinho chegar, como a Ave-Maria chegava do rádio as nossas casas no final da tarde.  Era o aviso, junto às badaladas do sino, que a noite chegara. Coisa que não aconteceu. Quando percebi não era mais de dia -  já era tarde, tarde demais para o encontro. Restou-me ligar para me explicar. Fui perdoado pelo que não tenho: Não tenho celular e não uso relógio.  Fui perdoado pelo que sou e pela a minha maneira de ser. Restou-me uma nova chance com um novo horário para o nosso encontro esperado.

Nos dias de verão tudo era maior. As brincadeiras varavam as tardes e terminavam em noites de estrelas.  Éramos andorinhas voando em bando.  Moleques esquecidos pelos ponteiros do relógio. Pai e mãe têm medo do escuro. Depois das seis, brincadeiras só em frente ao portão.  Mas no verão os portões ficavam longe de nossos olhos e pernas. Hoje, as crianças têm portarias e porteiros. São os acordos de um tempo indefinido.

No dia seguinte da minha distração, tornei-me guardião provisório do tempo, para não repetir a gafe do dia anterior.  A reincidência faz parte do meu histórico. Era só um encontro. Um primeiro encontro de reconhecimento.  Somos batedores à procura de rastros que nos levem ao que desejamos.  Mas nada aconteceu. Só ficamos naquele encontro. Em noites sem estrelas eu me cubro por inteiro. Delibero rapidamente. Não tenho muito que pensar. E nesse encontro, deliberamos juntos. Não foi o encontro esperado, mas foi divertido.

Quando a incompatibilidade é maior que tudo, o melhor é não insistir.

Lá estávamos, no verão passado, de mãos dadas curtindo uma semana de férias longe da nossa zona de conforto. Praias, ilhas, cachoeiras, exposições, artesanatos, livros e muito mais. Estava tudo indo bem quando de repente uma frase mal colocada jogou tudo por água abaixo.  Éramos compatíveis em quase tudo. A única diferença estava no que achávamos do casamento. Enquanto ela vestia a sua causa de véu e grinalda, eu me despia em abandono. Tirava de mim a possibilidade do terno e abria a braguilha da bermuda.  Pulei ao mar. Eu não me cubro em noites de estrelas.

Paulo Francisco



Questão de gênero





Eu não me apego a detalhes. Sandra Dias, num dia desses, no trabalho, afirmou numa conversa nossa ¨- Paulo, mulheres se apegam a detalhes, o homem passa batido, ele é mais direto.¨ Fiquei pensando na afirmativa de minha amiga. Realmente, eu não sou detalhista. Às vezes me perco neste aspecto. Quando estou distraído, não percebo nada. Não sei se o que ela está vestindo está ou não na moda. Que aquela pintura de cabelo é um tom mais escuro ou claro que o do mês passado. Sou distraído demais.

Sou mais genérico com relação ao que me detém. Não consigo perceber um quilinho a mais ou a menos. Sou mais afetivo que visual. Sou mais detalhista num beijo; num afago. Minhas mãos enxergam melhores que os meus olhos e, os meus olhos falam mais que minha boca. Vejo por um todo, vejo mais inteiro. E é aí que eu danço.

Mas não conheço um amigo que perceba detalhes. Tudo bem, eu elogio, mas quando eu elogio é pelo conjunto da obra. Não por um pequeno detalhe. Como vou saber que a cor da unha mudou para uma cor mais quente. Quando olho, olho pra mão e não somente para os anéis; quando olho para os seus cílios, esqueço a cor das meninas de seus olhos e, quando olho os seus olhos, vejo o por inteiro. Acho que tenho que parar de olhar em raio X. Vejo o seu interior – gosto de alma. Deixo a aparência para o segundo plano.

Sabe esta coisa de não esmagar nas entrelinhas que a Clarice disse. Acho que lá, nas entrelinhas, estão o que elas querem ler ou ouvir. Então não adianta falar somente sobre um vaso com um cacto, porque acaba, ela achando que é o cacto e não a flor existente. A pipa é ela, mesmo que eu tenha achado que o céu fosse dela. As gaivotas são dela e não as brumas. O mar pertence a ela e não o barco.

Gosto de falar coisas de amor. De todo o tipo de amor. Gosto de amores calmos, pacíficos, mas não dispenso um momento tempestuoso de quando em quando. Calmaria demais enjoa. Tempestade demais sufoca.

Como escrever e deixar nas entrelinhas somente o vazio entre elas. Talvez eu faça isso, mas tenho certeza que ela vai achar que tudo está ali, no invisível, no viés; que tudo é pra ela. E às vezes é, confesso.

Não me detenho a detalhes e aí eu danço. Danço miudinho, no sapatinho.

Será que a distração é uma peculiaridade minha? Não, não mesmo. Sou distraído, mas não sou bobo.

Até porque a alma feminina pertence a elas. Deixa-me com a minha masculina e distraída.

As estrias são delas.

As celulites são delas.

As gordurinhas são delas.

O que eu quero mesmo é a alma.




Paulo Francisco