Sobre amigos

 


A escuridão desintegrou-se com o brilho de sua chegada. Era sempre assim. Bastava aparecer com seu sorriso grande, com a sua fala mansa, com seus olhos de gata que o cansaço sumia e a alegria tomava conta. Tem gente que irradia felicidade. Poderia citar algumas pessoas com essa qualidade rara. Como não quero ser injusto com aquelas-que também amo- mas que não se enquadram nessa categoria humana tão fantástica, não darei nome a nenhuma delas.

A liberdade que tínhamos um com o outro era tanta que nos restava rir, gargalhar até mesmo nos nossos fracassos. Com ela, o lema era levantar a poeira e dá a volta por cima, como já dizia a música de Vanzolini. Mulher retada, que vai em frente, segue seus objetivos até alcançá-los. Já está se preparando para ir a Brasília no segundo semestre. Conversando sobre a situação atual que nos encontramos ela me sai com a seguinte frase: ¨Vamos pra posse?! ¨ Cai na gargalhada.

Tem gente que sabe nos fazer bem. Toda vez que passo por ela, os nossos sorrisos se chocam. Incrível a sua capacidade de me fazer sorrir, até mesmo nos meus piores momentos. O mais engraçado que não tinha percebido essa condição emocional, até que depois de muito tempo, mas muito tempo mesmo, ela me parou e disse já sorrindo: ¨- Paulo, porque você está sempre sorrindo? ¨ Respondi com mais sorriso e disse que sempre que a via, voltava no tempo da escola que erámos só felicidade. Caíamos na gargalhada.

Tem gente que faz os meus olhos brilharem. É certeza de leveza, de tranquilidade, de vontade de ficar junto; que o papo vai ser bom, e que a despedida vai ser adiada até o último segundo.

Sabe aquela pessoa que não precisa estar o tempo todo com você, mas quando está perto parece que nunca se distanciou. Pois é, somos assim. Chamo isso de amizade e respeito. É certo de abraços apertados, beijos demorados e sorriso de querer bem. Amizade fraterna, amizade que torce, amizade pra todo o sempre. Independentemente de estar juntos ou não.

Ontem, a escuridão desintegrou-se com a sua chegada. Sabe, tenho que deixar de ser reclamão. Tem gente muito boa ao meu redor.

- Não é mesmo!?

 

 

 

Equilíbrio

 


Ao contrário de outros finais de tarde, a chuva chegara delicada, trazendo consigo um ventinho gelado de deixar arrepiados os nossos corpos quentes – certeza de uma noite calma e sem insônia. Quem me dera essa calmaria fosse diária. Noite de lua; de pensamentos longínquos, e de música suave no ar – coisa minha.

Às vezes, só às vezes, fico na inércia – o mundo pode vir abaixo que não estou nem aí. Aprendi a duras penas que a melhor resposta para determinada situação é o silêncio. É fazer ouvidos moucos. O mundo está muito doido para dar crédito as insanidades individuais. Tenho o cantar dos pássaros, as algazarras das maritacas, o uivo do vento, as madrugadas raiadas pela luz da lua e perfumadas pela dama da noite e, tenho também, a minha própria insanidade. Então, deixo a demência alheia para quem a aprecia – não faço questão nem quero participar de outros manicômios. O meu nicho está em outro habitat.  Não venha provocar-me com vara curta, a velha onça, ultimamente, está tranquila, mansa e de barriga cheia.

Ela, aparentemente afoita, manda-me uma mensagem de voz questionando a minha ausência. Ela, ainda não entende que o meu tempo não é definido por ponteiros, horas marcadas, e muito menos por juras e promessas. Não há juras, não há promessas, há verdade, sinceridade, confiança mútua. Então respondi, no meu tempo, que estava no meu canto, sozinho, contemplando o horizonte. Acho que não entendeu. Mas quem entenderia? A loucura é personalizada. Basta observar os psiquiatras.

Às vezes, só às vezes, abro algumas exceções. Tento enfrentar as minhas fobias - que são muitas. Valéria, minha preta do coração, mandou-me um recado dizendo que estava com saudade. Não respondi. Não precisava. Ela sabe que é minha irmã de alma, e que a saudade é recíproca. Mas por enquanto, vou ficando por aqui falando com os marcianos.

Ao contrário de outros dias, preparo uma caneca de chá de hortelã – dica da Carol e sachê doado pela Claudia – na esperança de uma homeostasia do corpo e da alma.  Sim, às vezes, só às vezes, fico livre da cafeína, do tanino e da cevada. Gosto de quebrar a rotina com o inusitado. Hoje, dormirei embalado pela rede – presente vindo do nordeste.

  

Pedaço

 



Sussurrar era necessário. Vivia, pelos cantos, murmurando em segredos. Hábito adquirido pelo medo de não poder se expressar em verdades. Época em que o sim e o não eram suficientes como respostas. Opinar era impossível; debater nem pensar. A ignorância obrigava-o a correr pelas ruas do bairro em gritos e tagarelices. Palavras e frases soltas para muitos, mas de extrema importância para o moleque que adorava viver.

O silêncio era escudo. Proteção que muitas das vezes era rasgado por gritos agudos causados por espancamentos desmedidos de quem deveria proteger.  Bastava um olhar mal interpretado para o corpo franzino receber fios de ferro – de- passar roupa, cinto com a fivela para machucar, tamanco português, ou qualquer outro objeto que pudesse marcar a carne de quem nascera para ser amado e não para ser açoitado. As nádegas eram bolsas de sangue pisado; as coxas eram tatuadas pela fivela que fazia urinar de tanta dor. As costas eram lanhadas em feridas vivas. Água com sal na bacia de alumínio era o unguento para aliviar a dor; mas de quem?

O abandono foi um presente.

A pré-adolescência chegara com o álcool e o fumo.  De casa em casa, buscava incessantemente por carinho. Abria os braços quando o sorriso era sincero. Sorria, quando o aconchego era quente e seguro, sem se importar de quem. A carência era tanta que qualquer palavra de bondade era agradecida com um olhar brilhante e sem medo.

As cicatrizes eram profundas, de quando em vez, jorrava o sangue guardado.  A solidão não o abandonara. O ardido da pele jamais passara, por mais que a brandura do relento o cobrisse por inteiro.

Aprendeu disfarçar a tristeza; a esconder as marcas; a enganar outros olhos. Aprendeu a sorrir. Tornou-se adulto - mesmo faltando-lhe um pedaço - sobreviveu.

Desábito

 

Há algo de estranho no ar. Sabe aqueles dias em que você não se reconhece? Que o clima está doido e você o acompanha sem reclamar? Pois é... uma garrafa de vinho, uma comédia romântica sobre o natal, uma manta cobrindo o corpo e o sereno lá fora, em pleno final de novembro.

Há algo de estranho no ar. Celular desligado para ninguém atrapalhar o silêncio instaurado no quarto. Nenhuma conversa fiada para desconcentrar, nenhuma notícia na televisão, nenhum corpo para cutucar. Somente eu e a minha solidão.  Nela, cavalgo a galope na esperança de encontrar, no meio do caminho, a luz dourada que me tire dessa fria escuridão, que me traga a ardência solar e claridade para me despertar.

Há algo de estranho no ar. Há sim. Ah, sim!

 

Acordo

 


Em dias cinzas, o melhor é ficar em casa. Era sempre assim. A liberdade era ceifada com uma única frase. Quer coisa pior que não poder correr pelas ruas em brincadeiras inventadas? Tortura para um moleque que sempre estava com pressa. Infringia sempre. Apanhava sempre.

Hoje, o dia chegou cinza chumbo. Lembrei-me da frase tantas vezes repetidas. Hoje, gostaria de ouvi-la novamente, só para ficar em casa entrelaçado com os meus pensamentos.

Em dias tristes, aguados, gosto de ficar no meu quarto. Não estou nem aí se o que sinto está na lista dos sete pecados. Quero mesmo é estar com os meus pensamentos, com os meus segredos, com o meu silêncio quase solidão; gosto, nesses dias quase mortos, ressuscitá-los com os meus lápis de cor.

Hoje, o dia chegou, sussurrando em minha orelha, pedindo pra ficar na cama, transgredindo, sendo cúmplice de seus pecados.

Peguei o celular e mandei uma mensagem: - Por motivo de força maior, não poderei cumprir com o nosso compromisso. Vamos marcar, mais tarde, para uma outra hora.

Quer saber, em dias cinzas, o melhor é ficar em casa. Simples assim.