Mudança

 


 Para minha irmã Claudia Lemos

Quando ela foi embora, deixou-me um vazio no peito. A dualidade brotou na minha carne. Gargalhei de alegria quando ouvi sua mensagem que estava partindo, indo em busca de mais um sonho. Sempre torci pra que isso acontecesse, porque também é um desejo meu. Mas ao mesmo tempo, o danado do egoísmo berrou aos prantos: Como assim?! Ficarei aqui sozinho, fincado nessa areia movediça?!

Chorei! Chorei de tristeza, chorei de alegria, chorei de desespero, chorei por pensar que não a terei perto de mim nos momentos de confidências, nos dias nublados em que precisávamos um do outro para assoprar pra longe as nuvens pesadas e cinzas. Éramos timões um do outro em mares revoltos. Ainda não me acostumei totalmente com a distância existente; com essa mudança newtoniana. Tudo é uma questão de tempo – eu sei! Daqui a pouco tudo se assentará.

Minha amiga foi embora, foi viver em sua pasárgada e ser amiga da rainha.

Minha amiga foi embora, foi admirar outras paisagens. trocou o verde das montanhas pelo azul marinho. Foi contar suas histórias pra mãe-d´água, sentada na areia, entre a lagoa e o mar.

Minha amiga foi embora, deixou-me um vazio no peito, mas sei que vou melhorar.

E quando ela estiver vendo o sol cair no oceano, estarei aqui, no meu egoísmo, apreciando o nascer do luar.

 



Sob a lua

 




Para Waldir e Verônica

Lá estava ela numa belezura só. A noite estava sossegada, quando ouvi uns murmurinhos vindos do quintal da casa ao lado. Saí para saber o que estava acontecendo, deparei-me com os meus vizinhos admirando o luar. Gostam de noite de lua. Eu também.

Brotando atrás da montanha, a lua parecia um cartão-postal; um convite para observá-la. Uma tela a ser admirada com paixão. Impossível não respirar profundamente com tamanha beleza.

Foi numa noite enluarada que a vi pela primeira vez. O vazio do peito, deu lugar a esperança e sonhos. Ficamos juntos por algumas luas. Sem regras, sem promessas, simplesmente ficamos sob o efeito lunar. Dizem por aí que as mulheres se tornam mais bonitas, mais atraentes, mais viris em dias de lua cheia. Será?  Hoje, somos amigos. De quando em vez nos falamos. Raramente nos vemos. Mas quando nos encontramos, independente da lua, ela está sempre linda.

Por causa da lua, por causa da minha curiosidade em relação às vozes dos meus vizinhos, lembrei-me dela o tempo todo. Gosto desse frenesi que ela me provoca. Gosto de como a lua mexe comigo. Afinal, somos setenta porcento água, não é mesmo?!

Coincidência ou não, eu a vi sentada numa das cafeterias da cidade. Por alguns segundos, olhei-a pela vidraça da loja. Não estava sozinha. Continuei o meu caminho lembrando-me da lua cheia; continuei no meu caminho com sorrisos nos olhos. Lá estava ela numa belezura só.


Sinais

 

Quando me via sozinho, era um desespero sem fim. O coração acelerava, a boca ficava sedenta e os fantasmas apareciam. Mesmo sabendo que era uma solidão temporária, não admitia, de jeito nenhum, aquele abandono. Então o choro vinha acompanhado de soluços nervosos, ora contínuos, ora intermitentes. Chorava até cansar. Adormecia numa piscina de emoções.

Os abandonos foram tantos que passei a chorar menos, a soluçar menos e a admitir a condição de criança abandonada, embora soubesse que ficar em casa era a melhor opção. Dramático?! Talvez! Mas foi a partir dessa prática que não ouvi mais a frase que homem não chora - criei uma carcaça protetora. Daí passei a chorar por dentro, a soluçar por dentro e os fantasmas apareciam com menos frequência.  Acreditei que estava recuperado daquilo que todos discriminavam. Que esconder as lágrimas fazia-me mais forte, mais homem – mesmo sendo um menino. Confesso que demorei pra entender que podia chorar, que podia soluçar. Que ser homem é demonstrar sentimentos de verdade. Que faz parte da condição humana.

A dor foi grande quando o amor partiu. Não só chorei como urrei feito um lobo solitário no alto de uma montanha numa noite fria de lua cheia. Chorei por horas, por dias, por meses, chorei alagando o mundo. Chorei querendo colo.

Dor de amor corrói o brio. Difícil de curar. E quando a dor dá lugar a solidão, torna-se nítido a sofrença guardada. Hoje, depois de muito tempo, tornei-me professor de mim mesmo.

- Não adianta, todo amor curado deixa cicatriz.

 

Momento

 


As minhas viagens são outras. Irene adora viajar. Recebi uma mensagem dela, pedindo para confirmar o meu endereço. Poucos dias depois, estava recebendo de presente dois cachecóis e uma boina de Lima. De quando em vez, ela lembra de mim e presenteia-me com algo legal. Os meus incensários vieram de Minas, alguns chapéus foram presentes dela quando foi à Europa.  Irene está sempre por aqui. As minhas refeições são coloridas quando uso meu jogo americano feito de sisal tingido vindo do Nordeste. Mas o presente maior é a nossa amizade. Impossível não rir com ela. Até os seus dramas são engraçados. Gosto muito de conversar com ela, não há tema proibido. Somos francos, cúmplices. Ultimamente estamos nos falando pouco. Aliás, ando falando pouco com todos. Ainda não me recuperei totalmente da pandemia. Sorte que os amigos me conhecem e respeitam o meu isolamento.  Todos sabem que seis pessoas reunidas pra mim é multidão.

Ontem, recusei um convite de Valéria. A Claudia já não convida mais. Mas elas sabem que gosto mesmo é de uma boa conversa olho no olho; tête-à-tête.

Num ambiente com muitas pessoas, procuro um nicho, deixo de participar e passo a observar. Viajo quando isso acontece. Às vezes, pegam-me fazendo caras e bocas. A viagem é tão grande que só o meu ectoplasma permanece no recinto. Já estou longe com os meus pensamentos fantasiosos. Fazer o quê? Gosto muito dessas minhas viagens. Como diz na letra da música dos titãs:

¨Não é pior do que parece ser

Foda-se! ¨

Como disse antes, as minhas viagens são outras. Vou aproveitar e acender um incenso, que a Claudia me deu, enquanto leio alguns textos de Valeria.

Contraste.

  

A casa era antiga, branca, com portas e janelas encardidas. As maçanetas de porcelana com desenho floral eram beleza à parte, mesmo com o amarelado do tempo e de pouco cuidado por aqueles que ali habitavam. Tudo era antigo. O ranger das tábuas do assoalho, a falta de lubrificante nas dobradiças das portas, os rachados nas paredes e os vidros trincados dos vitrôs, que certamente já foram mais coloridos, compunham juntamente com a dona da casa, um cenário de terror e encanto.

Não sei se a casa ainda existe ou sequer se ela existiu um dia. O que sei é que ela está viva na minha memória que aos poucos começa a fragmentar-se. Não sei se é uma casa inteira, ou pedaços de muitas outras.

A velha gorda, enrugada e quase inválida, possivelmente é uma personagem inventada. Um desejo silencioso, praga rogada por muito tempo àquela que um dia me fez sofrer.

O mais estranho, ou engraçado – não sei- é que o quintal estava sempre cuidado, as árvores arbustivas estavam impecavelmente podadas, as flores sempre vivas e coloridas, os bancos de ferro pintados de branco, o caminho sinuoso de granito cinza e seixos cristalizados pareciam novos, como não se pertencessem àquele lugar. Era o oposto da casa maltratada, da velha gorda e enrugada, sentada na cadeira de balanço, mirando pela janela todo aquele frescor.

Havia luz, brilho solar, vento acariciando as folhas das árvores. No quintal, havia esperança – o inverso encontrado no interior da casa antiga.