Passatempo


Enquanto eles não chegam, eu fico aqui entre uma palavra e outra.  Esperava ansioso a chegada de meus amigos em minha casa. Eu era um anfitrião-mirim dos mais agitados em dias de chuva. Se a rua estava molhada, escolhíamos a casa de um de nós, para dela se transformar em nosso quintal. ¨- Melhor assim! ¨  Diziam elas comparando as ruas com a segurança do lar.

Mas o que eu gostava mesmo, era de ficar na chuva e fazê-la minha companheira. Por que parar a pelada se a chuva era passageira, e se já estávamos de corpos nus? Por que deixar de ir ao parque se o sol vem logo depois? A chuva nunca fora motivo para desistirmos de nada. Já tomaste banho de mar com os pingos da chuva de verão em sua cabeça? Eu já. E é muito bom.

Ela não quis molhar os cabelos – não queria ficar comum depois de horas no cabeleireiro. Uma pena, por que o que eu queria mesmo era chuva de chuveiro e corpos molhados e trêmulos em gozos quentes – era tempo de amar e não de esnobar.

Enquanto os meus amigos não chegam, eu vou escrevendo uma coisa e outra nesta tela branca do computador. É o que me resta neste tempo ocioso.

Adorava rabiscar em guardanapos enquanto conversávamos. Ficava ali ensimesmado em meus desenhos psicodélicos. Éramos abstratos demais, não conseguíamos concretizar nada juntos. Num segundo tudo mudava, saíamos de uma alegria plena para um obscurecer profundo. 

Era tudo muito doido e doído. Uma loucura desejada e uma pseudorealidade pretendida. Tudo era ilusão. Tudo era muito confuso, tínhamos sonhos divergentes.  Caminhos contrários a serem percorridos. Juntos, nos tornávamos heterogêneos. Éramos estradas paralelas com vontade de cruzar. 

Nosso único sentido era o que um poderia dar ao outro naquele momento: o capital e a mercadoria.

Mas o que eu queria mesmo era estar com os pés no chão para poder viajar, viajar de verdade, com mochilas nas costas e grana no bolso, mesmo sendo pouca.  Estava ficando chato aquele ir e vir em viagens insólitas.

Talvez eu faça uma pequena viagem na próxima semana, uns dez dias fora das montanhas – talvez eu veja o mar, ou os mares, ainda não sei. Não gosto de sair de casa em feriados prolongados. Fica tudo tão confuso. Perdem-se muito tempo em estradas, filas de mercados e restaurantes. Prefiro as semanas comuns para tais passeios. Em feriados eu fico em casa. Prefiro a minha rede na varanda e o meu céu azul. Gosto de minha casa e o que ela representa – Paz.  Paz que conquistei aos poucos, depois de muitas batalhas internas. Finquei o mastro em meu quintal e curto hoje o tremular da bandeira branca.

Barraco? Confusão? Discussões intermináveis? Nem pensar.  Tudo bem de uma discussãozinha de quando em vez para apimentar o clima, mas não mais que uma pequena discussão. Nada de cara amarrada, virar pro lado, ficar de mal. No máximo um beicinho pra eu desmanchar em sorrisos.

Confesso que gostava dos seus beicinhos; ela ficava igualzinha as menininhas birrentas e patricinhas. Desmanchava rapidinho, aquela cara-fechada em sorrisos reluzentes.

Esta ficando chato e esquisito, eu aqui, sentado, tomando água mineral e escrevendo nesta máquina. O garçom já me perguntou duas vezes se quero mais alguma coisa. Claro que quero, quero saber onde estão todos.

Quando ficava sozinho em casa por um motivo qualquer, o tempo demorava pra passar, A casa ficava só pra mim, mas não tinha graça, era como seu estivesse numa caverna ouvindo somente os meus passos – era triste.  Aproveitava o silêncio para inventar fantasmas.

Mesmo gostando dessa vida de eremita, gosto de ter companhia em minha casa de quando em quando. É preciso trocar energia, fazê-la fluir – energia acumulada pode se tornar numa bomba perigosa.

A moça sem nome, aquela que mora perto da praia, por passar um bom tempo no computador, acabou criando, para ela, um mundo tecnológico e frio.  Não entendo pessoas que não se aceitam; que não conseguem levar numa boa os seus problemas e defeitos. Qual a vantagem de fingir ser outra pessoa? Roubar o nome da irmã e viver numa ilusão vinte e quatro horas do dia?  Ela sabe que precisa de tratamento. Eu tentei ajudá-la, mas ela recusou a minha ajuda.  Qualquer hora ela explodirá – eu sei.

Acho que estou misturando os temas.

Mas era sempre assim quando me via sozinho, viajava em paisagens distintas. Ora tudo estava cinza, ora tudo se transformava num colorido forte e intenso. Como faço agora neste texto sem pé nem cabeça, mas que me distrai e me recupera de momentos vividos.

Os amigos estão chegando...

Vou parar por aqui, senão vão descobrir que eu escrevo e que tenho essa vida paralela.

Fazer o quê? Cada um tem o seu segredo. Não é mesmo?




Paulo Francisco

Passagem





Tirei o edredom do varal e levei a esperança pro meu quarto.  Sim, de quando em vez a esperança entra em minha casa e canta para me acordar. Era uma esperança pequena, nasceu com certeza nesta primavera. Deixei-a livre, pousada no tecido florido. Não expulso nada que em mim habita - deixo fluir.  Como eu poderia, por exemplo, expulsá-la, se tenho na minha pele a marca da sua existência?

Ela ficou parada por um bom tempo no edredom dobrado. Mas quando dei por mim, a visitante já tinha ido. Na maioria das vezes abria os meus olhos e já não as encontrava mais ao meu lado.  Voavam certamente para outras paragens, pois por aqui, nunca foi somente mar de rosas, tem sempre algo para ser dobrado com certeza.

Dobrar e ser dobrado. Não sou tão difícil de ser dobrado, principalmente quando a esperança está pousada em mim.  Ela não me entendeu quando disse que não queria ficar preso a nada e que as minhas asas estavam sempre esticadas na horizontal e nas alturas.  Criou-se naquele momento uma desesperança em seu coração.  Pra muitos, se o coração não está preso, está despedaçado. A esperança voou para outra paisagem certamente.  Eu sei que faz parte da vida as chegadas e partidas.

A vida é de idas e de vindas. As borboletas coloridas, por exemplo, que visitam a minha varanda todas as manhãs à procura de néctar, se decepcionam quando se deparam com as flores de plástico e a água açucarada em frasquinhos decorativos, mas não aprendem e estão sempre voltando.  Possivelmente na esperança de um dia encontrar um vaso com flores verdadeiras. Outros que estão sempre por aqui à noite são os besouros e as mariposas em busca de luminosidade. Contrários dos predadores noturnos que basta uma lua pra vida ser doce, eles não gostam da escuridão.

Pensando bem, eu também não gosto da escuridão. Eu gosto da noite, da poesia que ela me recita, da possibilidade que ela me dá em imaginação e som. É... gosto da noite iluminada pelos olhos da lua, das madrugadas  que dançam ao som do vento, gosto de olhar pelo buraco da noite as silhuetas das montanhas e árvores que me cercam e me fascinam.


Nos meus passeios noturnos sempre tenho a companhia da dama da noite e a esperança pousada em mim.


Paulo Francisco

Recomeço



Voltei! Neste movimento elíptico sou um errante. Ando em círculos bêbados. Não sei andar em paralelas estreitas. Volto pra casa sempre atordoado querendo paz. Já não gosto da zonzeira etílica. Já não sei sonhar em almofadas de bali - já não quero mais. Volto ao passado criado em fumaças esverdeadas. Volto em pontos aproximados. Não tenho marco. Sou trapo remendado. Sou colcha de retalhos. Sou peça que encaixa em caixas de madeira. Sou infância imperfeita. Sou o espaço entre o violino e o piano. Sou a voz de um coral de todos os cantos.

Voltei ! Para a imprecisão retida. Para o centro da vida.

Voltei para o recomeço

Voltei para o imperfeito

Voltei em movimentos elípticos

Vago em pensamentos errantes

Volto pra terras flutuantes

Aqui eu tenho paz.




Paulo Francisco

Pra dizer adeus




Vem nem que seja só pra dizer adeus. A cantora num duo cantava melancolicamente a canção. Fiquei com a frase em minha cabeça e, cada vez que pensava nela, meu coração disparava. Fiquei perdidamente entristecido na possibilidade de um dia isto acontecer comigo. Aço só o super-homem, eu sou feito de células, tecidos e órgãos vitais – sou um eucarionte. Meus sistemas se interligam. Meu coração pulsa e jorra vida e, sem ele não sou nada. No meu peito não tem um esse de super, tem todo alfabeto que represente o amor que tenho por ela. Sou de carne e alma. Sou humano e como tal, sou um possível sofredor de amor.

Não, não venha pra me dizer adeus. Venha pra me fazer um aconchego, me colocar em seu colo e me mimar de afetos. Venha, venha sim, me fortalecer com seus carinhos e cheiros.

Aceitar um adeus quando ainda se ama é fatal. Morre-se numa sessão de tortura chinesa – é palito de bambu na unha. Descobre-se que o castelo era de areia e o calor que te aquecia agora te queima como gelo.

Venha nem que seja só pra dizer adeus. E eles disseram adeus. A canção não saía de minha cabeça.

É certo que numa relação fragilizada a possibilidade de um adeus é forte. Basta a indecisão de um dos pares. Numa dupla a sincronia é vital. Não existe a batalha do eu sozinho.

E este amor tão frágil precisa fortalecer-se pra que não haja adeus.

Trago em meu peito o seu nome, não sou eu quem vai dizer adeus.

Trago em meu peito a certeza de você, não sou eu quem vai dizer adeus.

E a musica não acabava... Repetia-se em minha cabeça, deixando-me mais inseguro que aquele amor. Amor de papel, com pouca base; amor ainda em construção; amor em gema que não se transformou ainda em botão. Como florir?

E no final da canção o silêncio se instaurou em mim. Mas como eu já dissera, tenho alma. Corri para o telefone e disse com todas as letras: ¨ Te amo.¨

Ela não atendeu para me dizer adeus. Ela não me disse adeus. Simplesmente sorriu. Sorrimos juntos até a próxima canção.


Paulo Francisco

Noturno



O meu céu sempre será da cor do metileno. Terá sempre brilhos estelares em signos. Não consigo ficar sem a vida noturna. Posso até acordar cedo, mas a noite é minha menina. É nela que piso em letras. Adoro observar os notívagos que vagueiam em destinos diversos em luzes artificiais. Não sei se a luz natural me cega, mas é com a luz artificial que mais enxergo.

A penumbra é de certa forma, o véu cor-de-chá da noiva romântica; o véu rendado da viúva negra; o véu vermelho que cobre a cabeleira da cigana. A penumbra é a claridade dos notívagos. É nela que surgem os personagens marginais de uma sociedade fascista.

É na penumbra que encontro carros em velocidade mínima, com faróis baixos, pneus quase arriados em desejos encubados; é na penumbra que o senhor distinto em seu terno, aperta a coxa da trabalhadora vadia; é na penumbra que duas mãos trocam interesses mútuos. É entre o claro e o escuro que a outra metade aparece.

Embaixo deste céu noturno, todas as bocas são vermelhas; todos os seios são duros; todas as pernas em saltos, ou não, são tortas. No azul de metileno, todas as cores são pardas, e todo gato tem seu peixe pra vender.

Neste céu insone, faço e refaço caminhos estrangeiros; colo panfletos em postes encarnados; quebro vidraças alheias; banho-me em chafariz iluminado por luz neon; piso em pétalas quebradiças; durmo em caixa de papelão; fumo pontas de cigarros perdidas no chão.

Neste céu de duas luas, encontro-me sempre numa encruzilhada romântica. Entre o bem e o mal, carrego sempre o meu pão embrulhado em papel de seda e, no meu terço de couro, tem cinquenta e cinco contas, cada uma numa cor.

O meu céu sempre será da cor do metileno. Terei sempre almas para destecer.



Paulo Francisco


Manhã






Eu já tive medo do escuro. Sim, morria de medo do escuro, ficava vendo coisas. Depois descobria que era uma roupa pendurada, um chapéu no espaldar da cadeira. Mas tinha uma coisa comigo: nunca disse a ninguém que tinha medo. Segurava sozinho. Menino não demonstra medo; menino não chora.

Absurdamente não chorava; absurdamente não declarava os meus medos – e eram tantos. Cresci e continuei achando que homem não podia chorar e nem tampouco sentir medos. Acabei numa paranóia que hoje chamamos de síndrome do pânico. Detalhe: tive que me curar sozinho. Sabe aquela coisa de que homem não chora, não pode ter medo? Pois é, foi com estes princípios que curei a minha paranóia. Custou. Custou-me anos de solidão, mesmo cercado de gente que me amava; custaram-me amores; custaram-me amizades. Custou-me a liberdade que tanto primava.  Então, resolvi que tinha que sair daquele buraco negro. Entretanto o que fazer, se não pedia ajuda a ninguém? Pois bem, resolvi tirar as garras do monstro de minhas entranhas, fazendo o inverso. Passei a frequentar lugares obscuros não por prazer e sim por desafio.

Conheci o outro lado da história e quase fui sugado por ela. Porém o que me curou mesmo foi ter admitido que sentia medo e que podia chorar sem culpa. Aí, a dor surgiu tão aguda que o meu próprio grito atingia o meu peito como farpa longa e pontiaguda. Aprendi a sofrer e gritar. Nunca mais escondi os meus sentimentos. Hoje já não sofro como antes. Sofro, sofro sim: por amor, por saudade, pelos outros. Sou feliz por amor e por lembranças. Hoje, sou tão normal quanto qualquer pessoa.  Sinto raiva, a indignação ainda me pertence e os medos são tão naturais que o meu choro deixou de ser miúdo para ser declarado Eu já tive medo do escuro.Hoje meus olhos clareiam qualquer caminho.



Paulo Francisco

Mochila, aspirina e João Cabral de Melo Neto




Todos os dias eram primavera. Aos nossos olhos, as cores se derretiam como bolas de sorvete.No final da tarde, esperava as balas cor de rosa em formato de boneco que meu pai nos trazia para a nossa doce alegria. A guloseima cobria como confete as dores de nossas travessuras.

Neste tempo de estações indefinidas: se faz calor se faz verão; se faz chuva se faz outono; se faz vento se faz inverno - vou colorindo a vida conforme a tela surgida.

Olhei pela janela e vi um quadro pintado – nada se mexia; nenhum assopro fantasmagórico que pudesse balançar as folhas das árvores e indicasse que lá fora ainda havia vida. Estava tudo parado. O calor estava insuportavelmente quente. Arrastei meu corpo quase morto até o chuveiro e deixei a água bater infinitamente em minha cabeça num ato de desespero. Socorro, eu preciso sair daqui – pensei sonolento e dormente.

Quando verão, a água era a salvação sempre. Doce ou salgada, era ela que enrugava os nossos corpos até o cair do sol – ainda não se falava em buraco ou camada de ozônio e o nosso filtro solar era uma pasta d água que nos deixava com cara de boneco. Palhaços aquáticos correndo na areia e se divertindo em brincadeiras infantis.

Voltei para a janela numa esperança ventilada. E nada acontecia. Nesse dia eu soube o que poderia ser uma catástrofe climática. Não podia dar mais que alguns passos. Eu estava como diziam os mais antigos, entrevado. Sim, eu estava en-tre-va-do, im-pos-si-bi-li-ta-do a grandes movimentos. Minha coluna tinha travado uns três dias antes – fiquei acamado e irritado. Injeções, antiinflamatórios e relaxantes musculares não estavam surtindo o efeito esperado ou desejado. Ai de mim, pobre de mim. Só me restava o lamento intercalado de um riso sofrido.  Era impossível usar a máxima: relaxe e goze – será que a Marta conseguiria?

O que mais me aborrecia era ficar com algum tipo de enfermidade que me prendesse em casa e não pudesse compartilhar a minha dor com os mais próximos.  Lembro-me de quando a catapora, o sarampo e principalmente a caxumba chegaram a minha casa e a todos nós – eu e minhas irmãs ficamos hospitalizados a domicilio. Sentimos juntos a essas e as outras dores – as virais e as espirituais. Irmãos unidos de corpos e almas – nas alegrias e nas tristezas mesmo que em intensidades distintas. Sempre há aquele que aguenta mais as dores da vida. Dos três, eu era o mais cascudo. Era tralha. Deixava minha mãe de cabelo em pé. Não tinha doença que me fazia ficar quieto, sempre arrumava um jeitinho de burlar o tédio.

O quadro se repetia: primeiro a dor no estômago, em seguida a coluna e depois a sinusite. Não, não seria como no ano passado que os efeitos colaterais foram piores que a própria enfermidade. Não mesmo. Segurei as outras dores e evitei tudo àquilo que pudesse agravá-las e permaneci deste lado do atlântico isolado e mudo. Sem elas para solidarizarem com as minhas dores cíclicas. Já não sou mais tão forte as porradas da vida. Mesmo burlando as dores em prosas e poesias, ainda preciso de amparo mesmo que seja de frases feitas.

Pronto. A coluna foi se endireitando, o nariz secando e o estômago se acalmando. Corpo são - alma leve, alma leve - cara alegre.

Olhei pela janela e nenhum movimento que pudesse indicar que o tempo melhoraria. Estava quente e abafado. Nenhuma nuvem indicava que choveria. Corri para o quarto, vesti uma bermuda e em dois tempos estava eu a sombra de uma árvore tomando o máximo de cuidado para que os respingos da cachoeira não molhassem o meu antigo e fascinante João Cabral de Melo Neto – cito-o:

¨Num Monumento à Aspirina

Claramente: o mais prático dos sóis,

o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

Convergem: a aparência e os efeitos

da lente do comprimido de aspirina: 
acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.¨

Hoje, olhei para fora da janela e senti o vento em minha cara. Já sem dor, meus olhos reconhecem todas as cores brilhantes da mata atlântica; minhas pernas obedecem aos meus comandos e minha alma, independente, quer voar além das montanhas - gosto desse jeito que ela me empurra pra vida.

Todos os dias eram primavera. Ainda os são. Basta querermos.

Na mochila pouca coisa. Saio, hoje, seguindo o sol e quiçá abraçando a chuva.

Só não posso esquecer-me de levar a aspirina e os companheiros de João Cabral de Melo Neto – carrego-os com carinho neste meu caminhar sem destino certo.

Até a volta.





Paulo Francisco

Olá!


A música do Chico com o nome dela foi crucial para que eu fizesse os quatro contos anteriores. Estes textos não seriam possiveis se ¨Beatriz¨ não tivesse cruzado em meu caminho. Digo sempre que são encontros possíveis de acontecerem - e aconteceu. Usar frases da música de Chico e Edu nos textos foi pra mim o máximo neste Blog. Já brinquei com o Miltom Nascimento usando o texto Maria Maria; com o Benjor usando o Cadê Tereza, e acredito que ainda farei mais com os meus cantores e escritores preferidos.
Sempre gostei de escrever.
Aqui em meu computador tenho uma pasta chamada: Brincar de escrever - e, verdadeiramente, é o que faço por aqui, brinco,desligando-me de minha real profissão.

Ah! a ¨Beatriz¨ não sabe dos contos e muito menos deste blog - mas ela não é a única. Talvez um dia, quem sabe num próximo encontro, eu os apresento e dou continuidade. Nada é impossível quando usamos o coração de verdade.
A Maria sabia destes contos e desse encontro no mês de agosto e me pediu que não os publicasse. respeitei o seu sentimento de mulher. Mas agora, Maria é só lembranças, então resolvi publicá-los.
Acho que fiz bem, pelos elogios recebidos nos comentários. Só a Maria não veio, acho que ela está no mar, pensando no Omar. Quem sabe um dia eu não escrevo sobre os escontros e desencontros com Maria.


Até o próximo Post e obrigado pelos comentários sempre carinhosos.


Paulo Francisco

Encontro

Encontro ( I )





Quando ela apareceu, dirigindo-se a mim, não acreditei. Era uma miragem, a pílula que tomei tinha algo a mais além da composição real. Fixei os meus olhos nos dela e pude notar a agitação em seus cílios. Eles abriam e fechavam como uma janela ao vento, mostrando aos poucos os seus olhos claros, claros? Agora já não sei mais a sua cor. Azul, verde, cinza? Talvez todas as cores. Sua pele sim; era branca e fez-me pensar em sua nudez em porcelana como a delicadeza de uma peça chinesa. Senti o desejo de sabê-la. Será que ela era moça?

Ela falando comigo como se já me conhecesse de muito e, eu ali, olhando seus dentes, sua boca carnuda, sua face e, pensando de onde ela saíra. Será que ela caiu do céu? Pouco falei, preferi ouvir dividindo minha audição com os meus olhos. Escuto melhor com eles. Minha retina ouvia sua voz; ouvia sua boca; ouvia sua pele; ouvia seu colo e parte de seus seios à mostra. Meus olhos ouviam os meus desejos – desejos em botões de rosas; rosas pálidas e delicadas. Será que ela é triste? – continuei me perguntando.

Pouco falei. Ela falou por nós. Sua espontaneidade em dizer-me coisas, agradava-me – não precisei perguntar, as respostas vinham antes das perguntas. Os meus pensamentos mais secretos ficaram em respostas gestuais, no balanço de suas mãos, dos cabelos claros que brilhavam com invasão dos raios do sol, dos seios graúdos e obedientes numa respiração palpitante.

Tudo começou quando os nossos olhos se encontraram numa manhã quente e brilhante. Certamente a minha timidez impediria qualquer movimento em sua direção. Não precisei – ela era uma visionária. Falando com o sorriso, comentou sobre aquela manhã abafada e, acrescentou dizendo de sua preferência em estar naquele local logo naquele momento. A culpa era do sol invernal que se tornava insuportavelmente forte à tarde. Eu concordei com um simples sim. A minha cara de exausto já dizia tudo. Por outro lado, concordaria com tudo que falasse naquele momento. Estava paralisado pela sua espontaneidade e seu gracejo. Estava totalmente atônito diante daquela mulher de pele branca; de pele de porcelana chinesa. Será que ela era uma pintura?

Muito raro alguém puxar conversa comigo – estou sempre com os olhos enterrados num livro. Mas nesta manhã solar, os anjos não me permitiram uma leitura isolada. Eles estavam de plantão e tocaram cornetas ao meu desejo - e ainda falta muito para o meu aniversário. Como desejei nestes meus momentos de pura distração ser acordado por uma visão como a dela. Será que ela caiu do céu?








Olhos de mulher ( II )




Traduzo o seu silêncio. Seus olhos sempre me dizem algo inédito. Sempre recorro a eles nas minhas dúvidas imediatas. Não preciso de nenhum som a não ser o suave toque de suas pestanas, para obter uma resposta desejada. Tenho-os por lua e o sol. Aqueço-me com os seus raios refletidos em cores novas. À noite, sou bronzeado pelas luzes lunares que eles radiam em meu corpo. Sou dependente dos seus olhos; sou dependente de suas meninas. Vejo-me em sua retina.

Quando encontro um cílio em sua face, sorrio de satisfação, guardo-o em minha coleção de cílios seus. Não tento correr o risco de disputar um pedido em nossos dedos. Prefiro guardá-los no meu silêncio. Tenho uma coleção de cílios seus. Não os guardo em meus seios porque não os tenho. Guardo-os na caixa de meu peito. Tenho uma coleção de cílios seus em mim.

Quando agitada, fico ali olhando para as batidas de suas pestanas, perco-me no ar. Fico silencioso, imóvel - como o gato desejando o passarinho - olhando-os na esperança de um deles cair ao vento.

Quando os seus olhos de atriz me dizem adeus. Quando refletem em outros corpos; quando banham outras peles. Quando seus olhos de atriz, por um triz, deixam-me aqui. Seguem em outros caminhos; quando estão em outra dimensão, quando fecham as venezianas e me deixam na penumbra, quando me deixam parado no tempo – em vertigem - quando eles me abandonam por um esquecimento. Eu, em absoluto desejo, vigio o seu sono, tentando neste momento, traduzir o seu silêncio.




Dia-Sim ( III)






Sempre há esperança. Acordei no bode. Corpo pesado - devo ter guerreado a noite toda. Achei que ficaria em minha cama lamentando o dia de ontem; lamentando o dia de hoje; lamentando o dia de amanhã. Que nada! Recebi o telefonema carinhoso. A campanhinha tocou me trazendo uma surpresa, o telefone tocou de novo, de novo, a campainha soou mais uma vez, o telefone continuou a tocar.

Tem dias que a gente não sabe de nada. Olha lá pra fora e acha que vai chover, mas aí vem o vento amigo e carrega consigo as nuvens chumbadas. Permitindo o aparecimento do astro rei.

Tem dias que a fada deixa de ser fada, transforma-se em feiticeira; que o espelho plano fica côncavo; que o que dissemos é interpretado de maneira errada. Tem dia que tudo pode acontecer: o bode pode sentar em sua sala. Em vez de um beijo vem um tapa.

Mas sempre há esperança.

A feiticeira se transforma em fada; o espelho côncavo é necessário para enxergarmos melhor; o que foi dito foi bem interpretado e assimilado, o tapa parou no ar e o beijo que recebemos não é de adeus.

Sei que sua partida para o mar é uma opção de vida. Vou continuar aqui, por enquanto, em minhas montanhas – também é uma opção de vida.

Aí, tu tens as gaivotas nervosas – aqui, eu tenho as maritacas agitadas. Teu vento cheira a brisa – o meu, a margaridas. Teu sol adormece no oceano – o meu, por trás das montanhas. Banhas-te em águas marinhas – eu, em águas dulcícolas. Você é o mar – eu sou o ar. Meu vento te faz ondas – tuas ondas brincam comigo. Hoje acordei com vontade do mar. Com vontade de navegar em teu mar. Subir em tuas ondas e me deixar levar. Hoje, acordei com uma vontade de teu olhar; de mergulhar neste azul dos olhos teus. Tem dias que a gente acha que vai chover. Tomara, tomara que chova você.

Sempre há esperança.

O medo não se transforma em despedida. O adeus é só por hoje. A alma não é feita de éter. A canção tem o seu nome. E não é perigoso a gente ser feliz.




O seu nome ( IV )





Não sabíamos muito do outro, mas o que sabíamos era o suficiente para dizermos até amanhã.Cheguei a minha casa e, ainda sem acreditar no que acontecera, caí em minha cama que continuava desarrumada desde a noite passada. Dormi e quando abri os olhos, o relógio da mesa de cabeceira indicava dezessete horas. Perdi a hora. Peguei o telefone e liguei para dizer que me atrasaria.Levantei e fui direto tomar uma ducha quente. Deixei o vapor invadir todo o banheiro; deixei a água cair em meus ombros e em minhas costas que ardiam parcialmente.Com os olhos fechados e os braços apoiados no azulejo, escondendo o meu rosto, como se estivesse contando até vinte para depois procurar quem estivesse escondido, ali fiquei por um bom tempo, sentindo a água escorrer pelo meu corpo. Será que é perigoso a gente ser feliz?Vesti o roupão branco que comprara na última viagem em férias e fui para a cozinha fazer um café forte. Tomei-o sem açúcar. Peguei o primeiro jeans no armário, e a primeira camiseta branca na gaveta. Enfiei os pés no tênis e fui para o trabalho.Fiz o mínimo necessário. Dividi o tempo em duas metades: o antes e o depois


Antes de desligar o computador, procurei o meu pen drive na bagunça de minha mochila. Enfiei na entrada frontal da máquina e busquei uma música do Chico. Transferi-a para o aparelhinho, desliguei o computador, apaguei as luzes, tranquei a porta e segui.Já na calçada, peguei um cigarro no bolso e, a cada tragada, uma imagem, uma vontade, um sorriso. Aprendi a não andar com os pés no chão.

Tem gente que nos faz bem. Sabe nos ler em braile - nas pontas dos dedos.

Tem gente que não tem medo de ser feliz - acende a luz para ver os nossos olhos.

Tem gente que nos tatua na alma – difícil de esquecer.

Tem gente que nos obriga a pedir bis.

Cheguei a minha casa conectei o pen drive no aparelho e ouvi Beatriz.






Paulo Francisco







Teadoro, Teodora!





Quando ela ouviu a minha voz pela primeira vez, ela riu do meu esse e do meu erre. Disse que o meu esse tem som de Xís e que o meu erre é carregado. Ela riu de mim. E a sua risada de menina travessa me contagiou e rimos juntos destes meus esses e erres.

Ri. Há muito tempo que não soltava uma gargalhada de verdade – uma daquelas de virar a cabeça pra trás e de doer a barriga. Já não sorria tão facilmente. No começo do ano estava carrancudo, sombrio. Aí, ela chegou de mansinho e foi me conquistando e, acabei voltando a ficar leve. Não vou dizer que sou a leveza absoluta do ser, mas permito-me em ser, pelo menos, um pouco menos pesado.

O que adianta ficar o tempo todo remoendo passado? Passado já foi! Então, tento, agora, criar um presente mais suave - azul. Claro, que de quando em vez, surgem umas nuvens acinzentadas, mas logo vão embora – não deixo que elas se transformem em tempestade. O que eu quero dizer é que parei de resmungar. Chega de bancar o dono da verdade. Nunca me levou a nada este meu lado cri-cri. Até porque, não era tão ranzinza – fui me deixando contaminar por maus-humores alheios.

Agora quando vejo uma cara carregada digo: ¨Tá indo visitar o rio são Francisco?¨ e dano a rir. A pessoa pode não entender a piada naquele exato momento, mas que depois vai dar uma boa gargalhada, ah! isso vai!

Ontem, a minha Teodora (apelido carinhoso que dei a ela) estava carrancuda, culpa minha – provoquei! Ela ficou mau-humorada, e eu deixei que ficasse zangada por um bom tempo. Depois eu falei pra ela: ¨ Você sabia que eu escorreguei da escada e esfolei as minhas costas? ¨ Ela danou a rir. Rimos juntos.


Paulo Francisco

Um dia após o outro



Nada melhor que um dia após o outro. E depois de uma semana aguada, de cárcere privado, de apertos no coração, o sol chegou clareando as montanhas, esquentando a pele, pintando a alma, banhando de azul a prata esquecida num dos cantos da vida.

Tudo era tão inocente, tão infante, tão absolutamente doce, que eu não podia imaginar a minha vida de outra forma que não fosse de sol intenso e luas vermelhas, vermelhas como as frutas doces roubadas das feiras-livres por onde passei. Ah, eu fui ladrão de ilusões, roubei estrelas de céus alheios, enganei o sol ao meio dia, distraí a lua em canções doces e infantis. Fui sim, fui moleque arteiro de pular muros e correr o dia inteiro, como se o mundo só pudesse girar com as forças dos meus pés ligeiros.

Eu era vento que corria pelos terreiros de chão batido assustando as aves e manchando os lençóis brancos pendurados no varal de corda.  Não gostava da chuva, não gostava de lugares fechados. A madrugada ainda não tinha se apresentado em minha vida.  Não sabia o que era solidão até então.

Levantei com o sol sorrindo. Depois de uma semana de dias escuros, de ventos molhados, de noites sem lua, de frios inesperados, de janelas encostadas e de ruas vazias, o sol chegou pra restaurar a paz.  Não gosto de dias nublados, chuvosos, e principalmente de noites sem lua.

E depois da solidão insistente, do sofrimento masoquista, da palidez fria, das lágrimas ácidas, da boca rachada, das mãos acinzentadas, do crime frustrado, do suicídio incompetente... ela chegou trazendo cheiro de flor, a brisa trouxe consigo o aroma da vida, a certeza que nada é pra sempre e  que dias melhores sempre estarão por vir.

Nada melhor que um dia após o outro.  Lá estavam as casas de olhos abertos espiando tudo; a moça debruçada na janela, a velha sentada na cadeira, o gato deitado no muro, as crianças indo para a escola e o cachorro latindo para o mundo.

E como amanhã é outro dia, caminho cantando as cores da vida, porque ela certamente continua.

Paulo Francisco


Um dia qualquer



Levantei como eu gosto. Não tinha nada previsto. Nada agendado. Estava para o que der e vier. Manhã de sol. Muito sol. Mochila nas costas e caminhei para o meu parque preferido. Subi a trilha e lá de cima avistei minha cidade. Abri os braços e gritei. Gritei como um louco; gritei como um menino; gritei para o infinito o nome dela; fiz declarações de amor que foram levadas ao vento e espalhadas entre nuvens. E a cada grito meu, as árvores tremiam de emoção. E a cada vento soprado, seu nome era carregado para o céu.

Adoro estes dias ensolarados. Gosto de ler ao ar livre, deitado na grama embaixo de uma árvore centenária. Não tem leitura melhor.

Ali permaneci, por algumas horas. Volta e outra tirava meus olhos das letras e corria com eles numa visão panorâmica. Nada daquilo me era estranho. Crianças soltas, mães despreocupadas, nativos e estrangeiros num mesmo nicho - Sem divisão, sem território. Cabelos encaracolados, lisos, encarapinhados, loiros, negros; todas as cores de pele num mesmo abraço, num mesmo sorriso.

Gosto da mistura. Gosto dos sotaques misturados, transformando o som da voz numa sinfonia em ondulações variadas.

Saí do parque e caminhei até a feirinha de artesãos da cidade. Lá, tráfego de gente, vozes se misturam num barulho abafado e sem significado. Vozes desencontradas, frenéticas e sem uma frequência modular.

Saí sem comprar nada. Entrei para olhar; para sentir; para espiar e ser espiado. Gosto de observar gente.

Continuei com o meu dia improvisado. Continuei caminhando. Parei em frente à escola que fez parte de minha pré-adolescência. Olhei por uns instantes aquela arquitetura dos anos setenta projetado pelo Oscar Niemayer. Uma escola doada ao Município pelo Adolpho Bloch e localizada nada mais, nada menos que numa praça projetada por Burle Marx. Sorri. Sorri por lembrar minha ingenuidade em achar que o mundo era sempre de sol. Ali eu fui um moleque feliz.

Outras paradas necessárias.

Passei pelo teatro e comprei dois ingressos para a peça em cartaz. Conferi o que estava passando nos cinemas – nada me agradou. Parei diante de uma loja, gostei mais não comprei o sapato azul.

Parei no bar do João. Bebi cerveja; jogamos conversa fora e prossegui a minha caminhada itinerante.

Já em casa, uma ducha, um café, um som, um colchão.

O telefone tocou. Era um amigo convidando-me para sair. Eu disse: hoje não.

Mais tarde a campainha toca. Desço e no meio da escada volto para apanhar os bilhetes que comprara.

Adoro estes dias improvisados.



Paulo Francisco

Mitos






Os urubus planavam pacientemente nas correntes termais. Gritávamos:"Urubu vai chover?" E eles respondiam que sim com o bater das asas. Corríamos para o chão batido e com caco de telha desenhávamos o mais belo Sol, com face, olhos e sorriso.


Acreditávamos, piamente, que o nosso Sol desmancharia a certeza dos urubus. Gritávamos novamente:"Urubu vai chover?" E os danados em pleno voo aquecido, em total economia de energia, tornavam-se preguiçosos e não batiam as suas asas – passeavam absolutos no céu. Motivo para euforia. Gritávamos como índios em volta da fogueira em dia de festa.

Éramos crianças. Vivíamos num mundo de faz-de-conta e tínhamos a certeza de que tudo era verdade. Acreditávamos em fantasmas, bruxas e duendes.

Cresci acreditando que jogar pão fora era pecado. Até hoje, não consigo tal ato. Depois, descobri que o pecado não nos levaria ao inferno e, sim, à desvalorização da vida.

Custei pra entender, chinelo virado não faz ninguém morrer, e cortar o rabo da lagartixa, mesmo sem querer, não fará sua mãe ser praguejada pela cotó.

Atirei muito o pau no gato. Morria de sede toda vez que ia ao tororó e, possivelmente, revoltado deixava a morena sempre por lá. E a todas as frutas preferia salada mista.

Cresci e não mais corri dos ciganos, pelo contrário, fui seduzido pelas suas sedas e cores. Tive a certeza de que o Gentileza não era Cristo e muito menos Profeta. Comunista não comia criancinhas. Que o padre não tinha mulher se não quisesse. A beata não é mulher de Cristo e sim uma adoradora. Que o trem azul era menos que o prateado. Que entre todas as zonas: sul, norte e oeste, tinha aquela que não estava no mapa.

Não pergunto mais para os urubus, em correntes termais ou não, se vai chover. Agora eles têm outro significado: são importantes e fazem parte da natureza.

Cresci...

Mas quando vou para o mar, ainda acredito que uma daquelas gaivotas, tem em seu bico uma mensagem sua.

Fazer o quê se não cresci de todo?


Paulo Francisco

Aterrissagem forçada





Um barulho e um susto.  O pássaro bateu na vidraça e ficou paralisado de olhos abertos no chão da sacada. Olhei para ele e não sabia se o socorria ou o deixava ali parado, se recuperando da pancada. Decidi então não mexer com o coitado. De quando em quando eu virava minha cabeça em sua direção para certificar-me se o atrapalhado estava se recuperando ou não. Aparentemente sim, a sua cabecinha já se mexia de um lado para o outro, mas o corpo não. Demoraram uns vinte minutos para o danadinho se movimentar por inteiro. E de repente a liberdade – ele voou.

O seu voo me fez sorrir.

Gosto dos pássaros no céu. Afinal, eles têm asas pra isso - para voar, e não pra ficar preso em grades de arame ou madeira, satisfazendo o sadismo de alguns ignorantes. Odeio covardia.

Não entendo tamanha irracionalidade humana.  Como também não entendi, na época, a pedrada que levei, quando criança, por não ter deixado o moleque estressado matar o passarinho na calçada. Cheguei a minha casa todo ensanguentado e com a testa furada. Não sabia se estava chorando pela dor da pedrada ou por ver a minha mãe em desespero ao avistar-me tingido de vermelho. Nunca entendi a alma daquele moleque. Ele era mau.

Hoje, quando vi o passarinho bater com tudo na vidraça, me achei perverso por não ter o socorrido de imediato, como a minha mãe fez comigo no ocorrido já citado. Mas era verdadeira a minha preocupação em não querer feri-lo mais ou deixá-lo mais assustado ainda.  Fiz o certo, como também fiz certo em defender o frágil passarinho da maldade do menino.  Pois, eles voaram para longe do perigo.

Perigo. Palavra que me acompanhava por toda parte:

- Paulo, não aceite bala de ninguém na rua.

- Meu filho, não entre em carro de pessoas estranhas.

- Ô garoto, eu já falei pra andar próximo ao muro, nunca ao meio-fio, você entendeu?

- Eu já não falei que não era pra você se afastar daqui.

Tudo era perigoso.  Os ciganos, os comunistas, a polícia, o exército, tudo e todos.  Somente entendi a preocupação dos meus pais, quando tive o meu filho. Nasceu em mim um medo nunca vivido.

Mas mesmo com todos os avisos, eu sempre fui moleque de rua, de andar descalço, de fazer amizades, de correr perigo.  Eu queria voar, voar alto, ser um passarinho. Mas, os fatos que aqui narrei ensinaram-me que ter asas e poder voar é viver na iminência de encontrar uma vidraça no meio do caminho ou ser atingido por pedras vindas das mãos do inimigo. Porque nem todos podem ser como os passarinhos. Não podem não.




Paulo Francisco

Alívio




Minha mochila anda pesada demais. Sempre carreguei muita coisa em minha bolsa ou mochila. Mas agora ela anda pesada demais da conta. Tem de tudo – o necessário e o desnecessário. Eu já fui mais prático, mas ultimamente, não jogo nada fora, e sempre arrumo um lugarzinho pra guardar mais coisas.

Quantas vezes carregamos mais do que podemos aguentar?. Às vezes, eu acho que levo comigo o não-permitido. Decidi então, diminuir este peso que carrego nas costas há muito tempo.

Não tenho necessidade de carregar tantos sentimentos de uma única vez. Lembranças pesam. Saudades pesam. Arrependimentos pesam. Raiva pesa. E lágrimas retidas pesam e incham o corpo.

Agora, antes de sair, dou sempre uma olhada no que carrego para ver se eu esqueci alguma coisa desnecessária num canto qualquer da bolsa.

O que fiz com as coisas que ali estavam? Bem, estão em outro lugar e a cada momento, vou descartando ou reciclando - quando acho que vale a pena.

As lágrimas, por exemplo, foram todas levadas pela água da ducha quente um dia desses. É ... Chorar no banho não marca a cara e além de expulsá-las, aproveitamos para lavar a alma.

Hoje, eu estou saindo daqui pra comprar uma mochila perfeita para ser carregada nas costas. Ela é bem menor.


Paulo Francisco

Ainda chove


Ainda chove. Há camadas e mais camadas de nuvens indefinidas, pálidas e aguadas sobre a minha cabeça.  O céu está insosso.  Definitivamente no céu da minha boca não há estrelas, não há sol, somente esperança.

Ainda carrego comigo as angustias do passado de quando a chuva vinha e ficava sem hora pra ir embora. Criança gosta de sol e vento. Não gosta de chuva, não gosta de sentir-se presa, ela tem asas, gosta de voar.

Mesmo hoje morando na serra, carrego em meu código genético o mar. Mesmo respirando ares perfumados, guardo comigo o cheiro das algas marinhas.

Ainda chove. Chove sem parar.  Chove o desespero da noiva, a esperança da viúva, a fome do ambulante, chove na cabeça do turista, chove inutilmente no rio. E se aqui chove tanto, nem tanto chove por lá – há secura no sertão, rachaduras na pele, poeira no chão.

Na janela da donzela o pensamento se torna cinza, entre as frestas da veneziana seus olhos competem com a chuva. Não há malandros à procura, somente passos apressados e pretos guarda-chuvas.

Minha alma anda encharcada. O tempo não dá trégua. Durmo e acordo com pingos musicais. E como não tem jeito, não posso me transportar de corpo presente para lugares quentes. viajo em histórias contadas de dias ensolarados guardadas em minha estante.

Ainda chove uma chuva fininha, persistente, que nos convida a ficar debaixo das cobertas. Mas como a angustia não me faz dormir, fico por aqui, em minha rede nordestina, pensando numa maneira de voar até você.

Paulo Francisco


Previsão

Estava tudo premeditado. O dia estava premeditado. A lista de pequenas coisas estava mentalmente guardada. Tudo aconteceria como planejado, se não fosse ela – a chuva.

Chuva de inverno, chuva fininha acompanhada de vento. Olhei pela janela e, não vi viva alma entre a cortina de prata. Voltei para cama e tentei continuar o sonho que fora cortado na melhor parte quando o despertador tocou. Voltei e sonhei.

Premeditar o dia, organizar cada passo. Este não sou eu. Sempre deixo que tudo aconteça por acaso. Não gosto desta organização mental. Desta coisa metódica. Gosto mesmo do improviso. A chuva foi um acaso – ela molhou e manchou o que estava planejado.

E nesta manhã planejada, não pude andar até o parque, sentar no gramado e curtir uma leitura. Caminhar na minha trilha favorita, contemplar o panorama lá embaixo e, me sentir revigorado. Nesta manha acordei, levantei, deitei, sonhei, acordei, levantei e caminhei na insistente chuva de inverno.

Fui andar por aí.

Já na minha rua, a certeza que não teríamos novidades colhidas pelas janelas abertas em dia de sol. Quase todas estavam cerradas, as mais curiosas se permitiam um entreaberto tímido. Nenhum cão solto se atreveu acompanhar meus passos fortes e espalhador de chuva entornada. Ainda em minha rua, nenhum pássaro a cantar, nenhum gato no muro, nenhum olho mais comprido a me vigiar. Estava só.

Caminhei em ruas vazias de gente; caminhei em ruas cheias de histórias. Parei diante do amarelo transformado em verde da casa de dois andares. Tornei-me um errante que a cada passo, descobria o que já existia e, por tantas vezes, ignoradas pelos passos apressados.

Já não mais chovia, raios de sol criavam, em pequenas poças, as cores do arco-íris. Já não estava sozinho. Os meus passos se confundiam com outros apressados.

Tinha premeditado tudo, menos a chuva inesperada. Tinha tudo guardado em minha mente. Todos os horários; todos os afazeres. Quase tudo foi levado pela chuva; quase tudo foi substituído; quase tudo desmanchou-se como papel crepom. Quase tudo.

Ainda me restou o fim da tarde. E, nele, o que foi premeditado acontecera. Pude ver a transformação do claro para o escuro; pude contemplar a lua alaranjada; pude sentir o calor humano; pude ouvir: eu te amo.





Paulo Francisco

Lá fora está chovendo




Desenhei nuvens porque não havia sol.  Chovia longe, podia vê-la enfeitando as montanhas, cortinando a paisagem verde num prata cintilante.  Era assim que ela chegava até mim - numa lenta dança sensual, agitando seu véu cinza, acariciando o mundo.

Enquanto eu ficava preso em meu quarto parado à janela, numa reflexão própria de quem está perdido, ela sem medo algum, chegava molhando a terra, carregando sementes, criando caminhos, engolfando tudo.

Aprendi a desenhar flores ainda criança. Depois, foram as árvores que enfeitavam a minha tela branca. Montanhas, sol, nuvens, pássaros e caminhos sinuosos complementavam os meus pensamentos. Desisti de desenhar paisagens ainda garoto.  Troquei por algo mais abstrato que somente eu entendia. Não conseguia desenhar a chuva. Não conseguia acompanhar os seus traços. Ela sempre manchava a minha pintura.

Nas abstrações de meus traços, nas cores fortes e brilhantes, na incerteza do que era belo, criei à mão livre, o meu caminho confuso. Nunca consegui caminhar numa linha reta – sempre ficava nauseado e caía na escuridão. Sou mais feliz e mais resistente nas paralelas sinuosas e curvilíneas.

Hoje, a minha tela se manchou com os respingos da chuva. As cores se misturaram e formaram imagens não criadas por mim. Foram figuras que me remeteram ao tempo de criança, onde a bruxa era a personagem central e a megera tinha o poder de destruição.

A chuva continua. A tela já não tem mais uma imagem nítida. Transformara-se em uma mancha escura. As cores se misturaram e a paisagem existente escorreu para o chão.

Hoje, eu acordei com o barulho da chuva no telhado. Permaneci em meu quarto e desejei o sol. Tentei desenhar uma paisagem primaveril, mas a chuva a transformou num borrão.

Voltei a desenhar.

Desenhei o sol mesmo havendo chuva.



Paulo Francisco



Iluminados




















Para Waldir e Verônica





Os meus vizinhos fabricam velas. São velas artesanais e de uma delicadeza ímpar. São velas que iluminam os nossos olhos pela beleza e aquecem as nossas almas pela ternura mostrada. Os meus vizinhos fabricam velas com amor.

Quando acabava a luz em minha casa, era uma diversão em teatro de sombras. Brincávamos com os pássaros, os lobos, as bruxas e tantas outras personagens criadas pelas nossas mãos infantis. A parede era a tela inventada, com imagens surgidas num aprendizado em sorrisos e suspiros.  Gargalhávamos pra espantar o que em nós estava escondido.

Quando ela chegou, as velas coloridas estavam acesas, a mesa posta e o meu amor aquecido em chamas dançarinas. Foi assim, o jantar que preparei para aquele primeiro encontro em minha casa. Vivemos uma noite de sonhos e delírios, registrados em sombras gigantes e tremuladas nas paredes da casa  -  noite que guardamos com carinho, depois de nossos desencontros em tardes de verão e passarinhos.  Transformamos, mais tarde, as chamas do amor em luminosidade afetiva. Dormimos, hoje, na mesma rede como dois amigos.

Quando cheguei ao sertão sergipano, estranhei o caminho, a luz da lua iluminava os nossos corpos cansados e pesados pela areia fina e branquinha que cismava em cobrir os nossos pés  estrangeiros. O céu daquele lugar era mais iluminado por estrelas azuis do que em qualquer outro lugar que eu tenha passado até então. Luar do sertão e chão de estrelas cantadas por grilos, sapos e corujas – cancioneiros nunca mais esquecidos.

 Ao chegar à casa de minha avó, sorrir com a luminosidade criada pelas lamparinas. O luar do sertão lavou-me em poesias guardadas. Passagem, em minha vida, iluminada pelo carinho de quem me amava sem me pedir nada em troca, a não ser um cheiro pela manhã, à tarde e à noitinha. Cheirinho guardado na alma de quem ainda crescia e dormia na rede com maestria.

Quando a luz acaba por aqui, não ouço aqueles gritos de decepção e nem tampouco a gritaria saudando a sua volta. Há um silêncio soturno de uma decepção tecnológica. Não há mais o teatro, suas paredes são construídas de plasma ou de led – não há mais sombras tampouco dedinhos infantis em telas inventadas.

Ontem, a luz foi embora no meu bairro lá pelas nove da noite e só voltou de madrugada, indo embora logo em seguida, só voltando de verdade no meio do dia seguinte.  Aproveitei pra iluminar a minha casa com velas aromáticas e brincar com a lua, que estava linda e grávida. Ela invadiu meu quarto, e nele, não permiti as chamas inventadas. Banhei-me de poesia lunar até ela se esconder por de trás das montanhas. Ainda posso tê-la no meu céu marinho em noites abandonadas. Nunca estarei só em minha varanda enquanto ela existir. Lua-amiga, lua-guia.

Quando criança, pedia pra que não apagassem a vela enquanto eu estivesse acordado, gostava de vê-la dançando na parede e movimentando aquele ambiente cinza e flutuante. A chama invadia a minha imaginação de garoto que gostava de inventar os seus medos e segredos.

 Os meus vizinhos, Waldir e Verônica, fabricam velas de amor. São velas coloridas e enfeitadas com laços de fita, e que muitas das vezes, dá dó em acendê-las. Mas, se não acendê-las, elas perdem o seu verdadeiro motivo que é iluminar e aromatizar uma noite mágica e apaixonada.

Às vezes eu me pergunto, se eles são bruxos; se eles põem uma porção mágica à parafina ao fabricar suas peças. Mas, como sou um eterno romântico, prefiro imaginar que as velas só ficam prontas de verdade em noites de lua cheia, quando suas almas unidas, exalam o aroma de suas paixões, impregnando-as com as cores da vida.

Os meus vizinhos fabricam velas de amor, e eu as acendo em noites cálidas e infinitas.


Paulo Francisco