Momento

 


As minhas viagens são outras. Irene adora viajar. Recebi uma mensagem dela, pedindo para confirmar o meu endereço. Poucos dias depois, estava recebendo de presente dois cachecóis e uma boina de Lima. De quando em vez, ela lembra de mim e presenteia-me com algo legal. Os meus incensários vieram de Minas, alguns chapéus foram presentes dela quando foi à Europa.  Irene está sempre por aqui. As minhas refeições são coloridas quando uso meu jogo americano feito de sisal tingido vindo do Nordeste. Mas o presente maior é a nossa amizade. Impossível não rir com ela. Até os seus dramas são engraçados. Gosto muito de conversar com ela, não há tema proibido. Somos francos, cúmplices. Ultimamente estamos nos falando pouco. Aliás, ando falando pouco com todos. Ainda não me recuperei totalmente da pandemia. Sorte que os amigos me conhecem e respeitam o meu isolamento.  Todos sabem que seis pessoas reunidas pra mim é multidão.

Ontem, recusei um convite de Valéria. A Claudia já não convida mais. Mas elas sabem que gosto mesmo é de uma boa conversa olho no olho; tête-à-tête.

Num ambiente com muitas pessoas, procuro um nicho, deixo de participar e passo a observar. Viajo quando isso acontece. Às vezes, pegam-me fazendo caras e bocas. A viagem é tão grande que só o meu ectoplasma permanece no recinto. Já estou longe com os meus pensamentos fantasiosos. Fazer o quê? Gosto muito dessas minhas viagens. Como diz na letra da música dos titãs:

¨Não é pior do que parece ser

Foda-se! ¨

Como disse antes, as minhas viagens são outras. Vou aproveitar e acender um incenso, que a Claudia me deu, enquanto leio alguns textos de Valeria.

Contraste.

  

A casa era antiga, branca, com portas e janelas encardidas. As maçanetas de porcelana com desenho floral eram beleza à parte, mesmo com o amarelado do tempo e de pouco cuidado por aqueles que ali habitavam. Tudo era antigo. O ranger das tábuas do assoalho, a falta de lubrificante nas dobradiças das portas, os rachados nas paredes e os vidros trincados dos vitrôs, que certamente já foram mais coloridos, compunham juntamente com a dona da casa, um cenário de terror e encanto.

Não sei se a casa ainda existe ou sequer se ela existiu um dia. O que sei é que ela está viva na minha memória que aos poucos começa a fragmentar-se. Não sei se é uma casa inteira, ou pedaços de muitas outras.

A velha gorda, enrugada e quase inválida, possivelmente é uma personagem inventada. Um desejo silencioso, praga rogada por muito tempo àquela que um dia me fez sofrer.

O mais estranho, ou engraçado – não sei- é que o quintal estava sempre cuidado, as árvores arbustivas estavam impecavelmente podadas, as flores sempre vivas e coloridas, os bancos de ferro pintados de branco, o caminho sinuoso de granito cinza e seixos cristalizados pareciam novos, como não se pertencessem àquele lugar. Era o oposto da casa maltratada, da velha gorda e enrugada, sentada na cadeira de balanço, mirando pela janela todo aquele frescor.

Havia luz, brilho solar, vento acariciando as folhas das árvores. No quintal, havia esperança – o inverso encontrado no interior da casa antiga.

 

Noturno

 


Noite calma, alma sossegada. A noite veio em brisa, em vento miúdo, em céu adornado de estrelas; ela veio acompanhada de seu silêncio, que de quando em vez, era cortado pelos pios curto e longo da dona coruja – a noite veio para acalentar o corpo e a alma.

A noite não era de Pessoa ou de Cecília, tampouco de Vinicius. A noite era minha, só minha. Cúmplices, tínhamos segredos, desejos mundanos e divinos. Ela veio em calmaria. Acariciando a nuca e soprando a derme nua. Ela veio vestida de seda. Enfeitada com seu colar de estrelas.

A noite veio calma para sossegar a alma. Ela veio para guiar-me até à luz do dia.

Egoísmo

 

Hoje bateu uma carência daquelas. Corpo colado na cama, olhos querendo fechar num sono sem fim. Desejei um abraço apertado e demorado, um cheiro no pescoço e na orelha, um colo quente e macio.

Hoje, desejei tanto, mas tanto, ter alguém perto de mim. Alguém que coçasse a minha cabeça; que olhasse para mim e adivinhasse os meus pensamentos; que não criticasse a minha preguiça e muito menos o meu silêncio.

Hoje, acordei em sintonia com o tempo: cinza, chuvoso e preguiçoso. Acordei querendo colo, querendo você.

Hoje, acordei assim: um tanto quanto egoísta.

Outono


 


O sol nasceu morno. É sempre assim no outono. Ele vai aquecendo aos poucos até o meio do dia, quando a pele sente a ardência de seu poder. Apesar de todos os meus pesares, o outono é a estação que mais curto. Gosto de sentir a refrescância motivada pelo vento gelado em minha cara; da surpresa da noite estrelada; da lua espelhada nas vidraças; da manta cobrindo o meu colo e de uma fumegante caneca com chocolate em noites mais frias. Gosto da incerteza e das surpresas da estação - na mochila, sempre há um abrigo. 

Ontem, finalizei o dia admirando, da minha varanda, a lua crescente entre nuvens, parecendo brincar de se esconder de mim. 

Quando moleque, em noites frias uma pequena fogueira era providenciada em frente à casa de um de nós, para ficarmos sentados ao seu redor num bate papo sem fim - podíamos ficar a céu aberto enfeitado por estrelas, sem medo. Aliás, o medo só acontecia quando um adulto aparecia e contava alguma história de bruxas, fantasmas e correntes. Eram inevitáveis os olhos arregalados, a respiração silenciosa e o coração acelerado. Alívio, somente quando o grito materno chegava aos nossos ouvidos pedindo para entrarmos. Bendito o cobertor que servia não somente para nos aquecer, mas para nos proteger das personagens da história ouvida. 

Hoje, o sol demorou para aparecer. Culpa de uma cerração baixa. Lembrei-me da máxima:  névoa baixa, sol que racha. Dito e certo. O sol chegou, chegando. Percebi, caminhando nas calçadas do centro, homens e mulheres com casacos pendurados nos braços. Tem gente que não aprende, ou nunca ouviu o dito popular. Mas quando a noite invadiu o dia, a lua surgiu, a temperatura caiu, o vento veio manso e como ainda estava na rua, tirei meu abrigo da mochila, entrei numa cantina, pedi um caldo e uma caneca de vinho. Quando dei por mim, estava sentado ao redor de uma mesa, numa conversa sem fim, com pessoas que nunca vi. 

Agora, sentado em minha varanda, termino esse texto, namorando a lua.