Distração

 


Coisa boa está na varanda, deitado na rede, colocando a leitura em dia com músicas boas de fundo. Dane-se as louças na pia – mais tarde, certamente, serão limpas. Hoje, independentemente que dia seja, ele será o meu domingo: dia de procrastinar, deixar o compromisso pra outro momento.  Por ora estar com os autores preferidos, cantoras queridas e minha escrita esquisita é o que importa. Olhar o céu quase transparente; vagar em pensamentos até o cochilo ser interrompido pelas maritacas cantando; não ter hora pra nada é o que importa.

Hoje é dia de transgredir. Taça de vinho, comida por entrega e celular desligado. Pois a manhã será um novo dia – dia de labuta. A realidade sempre vem pra nos acordar.

Quando dei por mim, o azul, aos poucos fora se desfazendo, transformando-se em cinza que por sua vez dera lugar ao preto. A paisagem colorida sumira na mesma ordem. Lá estava o dia, lá estava a paisagem, escondidas pela noite sem estrelas. Torno-me, temporariamente cego, absorto em meus pensamentos tolos.

Acaso

 Do nada, ela vem com essa pergunta:

- Paulo, porque você nunca sorri nas fotos?

Respondi à pergunta citando Cecília:

- ¨Longe, num barco,

deixei meus olhos alegres,

trouxe meu sorriso amargo. ¨

Aí sim, sorri. Sorri não pela minha resposta, mas pela cara engraçada que ela fez. Dei um pulo da cama e fui até a estante, peguei o livro de Fernando Pessoa e recitei Sorriso audível das folhas:

¨Sorriso audível das folhas,

Não és mais que a brisa ali.

Se eu te olho e tu me olhas,

Quem primeiro é que sorri?

O primeiro a sorrir ri.

Ri, e olha de repente,

Para fins de não olhar,

Para onde nas folhas sente

O som do vento passar.

Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando

Onde não olha, voltou;

E estamos os dois falando

O que se não conversou.

Isto acaba ou começou? ¨

Ao término da declamação, o quarto transbordou-se de gargalhadas. Rimos numa inocência juvenil. Como é bom quando um sorriso chega inesperadamente. Ele sempre alivia, enaltece e fortifica a alma.

Claro que sorrio. Talvez, menos que outrora, mas ainda sorrio. Às vezes, o meu sorriso fica retido, represado no peito e vaza pelos meus olhos miúdos. Ontem mesmo aconteceu esse sorriso silencioso que me fortalece: estava indo pra casa e surpreso, vejo sentado em um banco do ponto de ônibus, entre duas senhoras, Manoel, marido de minha amiga Valéria. Continuei a viagem com sorrisos nos olhos.

Coisa estranha

 













Estávamos tontos, cambaleantes, caminhávamos tateando as paredes que de vez em quando sumiam dando lugar a aberturas que nos obrigavam a caminhar de quatro para não sermos engolidos pelo desconhecido. De repente rastejávamos como serpentes num chão úmido e gelado. Eu sussurrava para que ninguém mais pudesse ouvir. Perguntava, implorava, mas nem um som de volta a não ser o do meu medo ecoando pelo vazio.

Queria gritar, pedir por socorro... mas...a quem? Onde estávamos, como fomos parar ali? Sentia que tinha mais alguém naquele ambiente sinistro e aterrorizador. Era um predador, um caçador a nos observar? Fechei os olhos e tudo parou. Silêncio absoluto. Não sei por quanto tempo fiquei naquela posição de feto. Ao abrir os olhos, descobri que já era dia e que estava nu, cheirando estranho no meio da minha sala.

- E quem estava com você?

- Ninguém... talvez o meu outro que aparece de vez em quando.

- Cara! Que domingo estranho.

- Nada errado com um domingo nublado quando o que se deseja é o anonimato. 

- Verdade!

De bar em bar

 




Para os amigos Cervejófilos

 

 

- Nem vem que não tem, bacana! Ainda continuo por aqui. Foi a resposta que dei ao Russo quando, ironicamente, perguntou-me aos berros do outro lado da calçada se estava vivo. O sumiço pandêmico criou essa expectativa. Se bem que, de vez em quando, sumo por um tempo. Sumo mesmo.

- Quanto tempo eu não te vejo... Muito tempo mesmo! Ontem, fui ao Bar do Serginho – bateu fome de sardinha e sede de cerveja. Lá encontrei, entre vários conhecidos, o Caio e o Paulo, que já estavam na saideira. Com o Caio já tinha esbarrado várias vezes no bar, mas o Paulo não. Não porque eu tenha sumido de verdade. O meu sumiço com relação ao Paulo foi temporal, ou seja, os nossos horários não batiam. Depois de ouvir a frase, respondi que não estava saindo à noite.

- Cara, você sumiu! Levei um susto com a frase chegando ao pé da minha orelha. Era o Denílson, colega de bar e ex-colega de trabalho. Ri, retruquei dizendo que ambos sumiram e marcamos uma gelada no Bar do Serginho, pra colocar o papo em dia.

Um dia desses, estava no bar da Jaqueline e ouvi uma voz na calçada, dizendo que eu não a estava reconhecendo. Cerrei os olhos, mirei na pessoa e a surpresa veio. Era a minha amiga Lúcia, com seus dois filhos indo pra casa depois de uma sessão de cinema. O encontro foi uma farra, abraços e beijos e muitos, muitos sorrisos. Coisa boa reencontrar pessoas que a gente ama de verdade.

Peguei uma carona com a Fivian, colega do trabalho. Ela me deixou num lugar diferente do meu itinerário habitual. No meio do caminho, parei num bar para pegar uma água e quando entro no estabelecimento, ouço a frase em coro: "Professor, quanto tempo!" Muitos me chamam assim. Eram Severina dona do bar e seus filhos. Nem sabia que eles estavam estabelecidos naquele bairro. Esqueci da água e matei a sede com uma cerveja estupidamente gelada.

Sabe o camarada do começo desse texto? O Russo. Pois é, acabou de me ligar, querendo saber como estou. Expliquei que a alergia atacou e que o joelho não está nada legal. A cadeira quebrou comigo e ferrei com o joelho. Coisas da vida! Adivinha onde ele estava? No bar da Jaqueline.

Antes que você venha me dizer que ando de bar em bar, respondo-lhe antecipadamente:

-  Nem vem que não tem, bacana! Ainda continuo por aqui. Com sede de cerveja e fome de sardinha.

 

 

 

Do the right thing.

 



                                                                                                                                                     Para o amigo Tuninho

Pôr a mão na massa.  Bastava um pouco de barro pra farra começar. Transformávamos em oleiros mirins, criando bonecos, animais e vários objetos por pura diversão. Gostava de esmagar com as mãos aquela massa escorregadia e brilhosa. O auge da diversão era a guerra de lama no final. Tudo destruído por uma causa maior – a alegria.

Colocar a mão na massa. Não me lembro de quem me ensinou a fazer massa de pizza, talvez tenha sido a minha mãe ou aprendi sozinho apenas observando alguém aprontando-a numa cozinha qualquer.

Como gostava de chamar os amigos para comermos uma pizza de muçarela feito por mim. Naquela época não tínhamos os fast foods. E a massa era valorizada, nada dessa coisa fina de hoje. Outras massas tornaram-se famosas na minha cozinha. Os elogios sempre vinham dos amigos.

Valorizo quem põe a mão na massa. Invejo os que têm o dom de manusear uma massa corrida por exemplo. Um dia desses resolvi reformar a minha despensa. Achei que jogar uma massa na parede e alisar com uma desempenadeira era tranquilo. Sempre observei os serventes de obra fazendo tal tarefa e não via nenhum bicho de sete cabeças. E como está na moda o tal de ¨faça você mesmo¨. Achei que poderia executá-la sozinho. Fiz uma pequena pesquisa, anotei todo o material necessário para a reforma personalizada e fui, todo orgulhoso, às compras.

Confesso que a empolgação era maior que a certeza de ser ou não capaz de executar o tal DIY, ou seja, faça você mesmo. Pensei: se não tentar com como saber.  Então mãos à obra, melhor, mão na massa.

Sabe aquela frase que quando dizemos sempre tem alguém pra retrucar? Pois bem, como estava sozinho pude dizer aos berros que nunca mais! nunca mais me meto a besta a tal tarefa. Com a mão literalmente cheia de massa, saquei o celular do bolso da bermuda e liguei para um amigo pedindo um "help". 

Não vou aqui detalhar o meu fracasso. A minha massa é outra. Quer saber: Cada macaco no seu galho! E o meu galho está por aqui.