Cena

 













Ele olhou pra mim e metralhou:

- Veja bem! Não estou nem aí pra determinadas coisas. Faço-me de desentendido pra não me aborrecer com tanta imbecilidade. Quem conversa com porta é maluco.

"Quem dera fosse verdade!"

Continuei a ouvi-lo. Falou de futebol, do trânsito, de políticos, praguejou a sua ex-mulher, reclamou do filho mais velho e de repente:

- Você não fala muito né?

Olhei para aquela cara vermelha de nariz pontudo e o respondi com um sinal apontando para minha garganta e falando baixinho e rouco:

- Garganta inflamada.

O vermelho abanou o braço pra cima, resmungou alguma coisa e saiu falando sozinho.

Olhei sério para o dono do bar do outro lado do balcão, e depois de alguns segundos, danamos a rir.

Falei alto e bom som:

- Desce uma cerveja bem gelada pra tirar a poeira da garganta.

A mocinha sentada perto de  mim exclamou:

- Vixe! dá trela pro senhor vê.

Gargalhei mais uma vez.

Cotidiano

 



 





Não dá mais pra adiar. Entro na cozinha e vejo a louça empilhada na pia. Não tenho problema em lavar louças, até gosto. Mas tem dias que até o que gosto quero longe de mim. Como dizem por aí que quem canta seus males espanta, ligo o som e começo a lavaria – emulsificando os engordurados, dando brilho no inox. Em poucos minutos tudo lavado; a harmonia sempre volta depois do caos. Um suspiro de alívio e um sorriso de satisfação sempre chegam depois de uma tarefa feita.

Quando posso, adio mesmo. Os amigos não contam mais comigo. Convidam sabendo que dificilmente irei. Eventos corporativos nem pensar. Festinha de empresa de final de ano quando aparecia era por pura obrigação, nunca por educação. Na primeira oportunidade saía à francesa. Hoje, nem uma coisa nem outra. Simplesmente digo não. Deixo os burburinhos para os outros. Adoro meu silêncio, minha rede, minha varanda e meus livros.

Ultimamente ando procrastinando quase tudo: em visitar uns, em receber outros. Estou sempre adiando alguma coisa. Não é mesmo, Maria?!

Hoje a natureza foi minha cúmplice. A listinha de tarefas foi adiada porque choveu pesadamente e continua. Restou-me escrever o texto, assistir alguns filmes e até ligar pra a amiga Irene.

Agora estou aqui ouvindo a chuva batendo na calçada. Incidental nesse meu mundo tão previsível.

Realidade

 













Os meus sonhos recorrentes sobre a matemática cessaram faz um tempinho. Espero que seja pra sempre. Era o mesmo sonho por décadas. Se tivesse que escolher, preferiria os pesadelos com palhaços – nunca gostei da imagem desses mascarados. A palhaçaria que me perdoe, mas que dá medo... Ah! isso dá! A taquicardia causada pelo pesadelo sobre a matemática era tão forte que ao acordar não conseguia dormir de novo, era uma confusão entre o real e o virtual.

A velha gorda, moradora da casa antiga, sentada numa poltrona puída próxima à janela continua aparecendo – no entanto não me causa medo, mas pena!

Um quintal claro, florido, tão lindo e ela à sombra daquele ambiente melancólico e empobrecido. Será castigo? Punição? Um tipo de autoflagelação? Toda vez que tenho esse sonho, acordo pensativo. Pois, não consigo ver o seu rosto. Tenho a impressão que a conheço, que a velha gorda pertence ao meu passado. Não o meu passado de infância onde as mulheres eram extravagantes, quase fellinianas. Um passado mais recente. Será que ela existiu e eu apaguei da memória e agora me aparece fragmentada? Sei lá! Mas que ela é esquisita não tenho dúvidas. Será que a velha gorda, com aquele cabelo escorrido é um fantasma?!

A chuva

 


Antes que a chuva caia. Todo verão era sempre o mesmo mantra: Volte antes do temporal, ouviu! Era quase certo termos chuva no finalzinho da tarde – a famosa chuva de verão.

Estávamos quietos, deitados no chão da sala, cada qual com seu pensamento, quando o céu rompeu o silêncio num estrondo absurdo anunciando temporal. Não demorou pra chuva chegar molhando a vida.

Levantamos daquele sossego quase espiritual e fomos direto para a cozinha fazer o café da tarde. É quase um ritual prepará-lo; grãos torrados moídos na hora, passado com a água quase fervendo pelo coador de pano. A casa sempre fica impregnada com aquele aroma de café vindo da serra de Minas gerais.

Comecei a voltar no tempo, falando das chuvas que marcaram a minha infância. Ríamos de minhas travessuras, de histórias de outras pessoas testemunhadas por mim, ou simplesmente ouvidas por um garoto curioso.

Contei da minha estratégia quando o trânsito ficava parado por causa da chuva. Descia do coletivo na primeira oportunidade e parava num bar ou qualquer outro lugar que tivesse cerveja. Esperava de gole em gole a chuva passar, o trânsito fluir.

Quando a perguntei se tinha lembranças sobre a chuva, ela disse-me que adora sentir a água da chuva lavando seu corpo numa tarde quente de verão. Que o cheiro da terra molhada entrava pelos seus poros e a transportava ´por uma época alegre e ingênua. E Num suspiro profundo concluiu: Mesmo sendo caça de olhos famintos!

Voltamos pra sala e silenciosamente ficamos ouvindo a chuva lá fora. Certamente ela passará!

 

Presente

 

Abro as minhas mensagens no celular e leio:

- Paulo, gostou da surpresa?

Pergunta corajosa pra quem sabe que surpresa não é pra mim. Principalmente no dia do meu aniversário. Sei que é difícil pra muitos que eu queira estar sozinho nessa data. Posso até festejar depois, mas o dia é só meu. Não sei  ou não me lembro de já ter escrito sobre este assunto. Mas não importa. O que importa é ter quem queira transgredir essa regra.

Mensagem de parabéns pelo celular? Talvez retribua a mensagem com atraso – vai depender do meu humor. Não, atoa, que muitos me chamam de ranzinza, rabugento e outros adjetivos. Quer saber: ¨Tô nem aí! ¨

Antes que você tente me analisar por esse texto, já vou lhe dizendo: Não vem que não tem!

Antes que  me chame de esquisito, já vou lhe dizendo: Não vem que não tem!

Antes de achar que eu fico isolado, triste, com pena de mim, já vou lhe dizendo: Ledo engano, pessoa!

O aniversário é meu. Faço dele um dia especial pra mim. Às vezes, dependendo do dia, vou ao cinema, teatro; faço uma caminhada no parque, saio pra tomar cerveja, converso com estranhos, ou simplesmente tomo uma taça de vinho, assisto a um bom filme ou maratono uma série. Por favor, não me acorde com congratulações. Continue me acordando com beijos quentinhos.

Mas por que estou escrevendo sobre isso? É que esse ano aconteceu uma coisa que não estava nos meus planos. Volto a pergunta do começo do texto. Quando recebi por mensagem a pergunta, quase fui mal-educado na resposta. Respirei, respirei profundamente antes de responder – técnica boa para não ter arrependimento depois.

A priori não gostei da transgressão, mas levei na flauta como um bom brasileiro. Depois de tanto tempo de insistência de muitos para comemorar a data de meu aniversário,  acabei entendendo que pra eles aniversário é festa, pra mim, reflexão.

Pois bem, uma amiga de muitos anos acabou se hospedando num hotel na minha cidade para fazer-me a tal surpresa. Ela sabia do risco que corria. E por pouco não conseguiu encontrar-me, porque estava temporariamente incomunicável – celular desligado. No entanto, como precisava confirmar um compromisso, acabei ligando o aparelho para ver se tinha mensagem. Daí a surpresa. Ela estava na cidade. Acabei indo ao seu encontro.

Agora, vou aproveitar esse momento para respondê-la com o coração aberto e no pé de sua orelha: Surpresas me incomodam, mas você não. Gosto de ficar sozinho, mas pra você sempre abrirei uma exceção.

Talvez, surpresa seria se eu não fosse ao seu encontro – sou óbvio demais.

Agora quem faz a pergunta sou eu:

- Gostou da surpresa?