Auge



Andávamos nas pontas dos pés para não acordar o silêncio. Ainda estava escuro e com estrelas quando saímos de casa. Mais tarde o sol chegou rasgando a noite, clareando a íris, desnudando o dia. A estrada era toda nossa. Nossa e do vento que acariciava as árvores num balé frenético e ruidoso. Estávamos a caminho de uma nova aventura. Uma aventura inédita, pelo menos, para mim. Enquanto o vento cantava na estrada vazia, o meu peito gritava forte numa estranha taquicardia.

 Com os olhos vidrados para não perder nada numa piscada involuntária, registrava cada segundo daquela viagem matutina. Não sabia se iria gostar, não sabia se seria divertido, ou se seria o contrário das expectativas anunciadas – tediosamente comum.

 Mas nada importava a não ser chegar e registrar em meu peito aflito o que me fora prometido. E o clichê mostrou-se verdadeiro – a primeira vez a gente nunca esquece. E todos que estavam ali já sabiam disso. Eu era o único daquele grupo ainda não ter provado da sensação daquele momento.

As atenções se voltaram para mim. Todos queriam, certamente, reviver o passado, através da minha existência.  As perguntas chegavam tumultuadas, atropeladas pela curiosidade alheia:

- E aí, gostou?
- O que está sentindo?
- Vai, anda, fala alguma coisa...
- Está contente?
- Fala com a gente... Vai ficar aí parado sem dizer nada?

Mas as palavras chegavam longe aos meus ouvidos, porque longe eu estava.  Não iria responder ou dizer qualquer coisa. Queria guardar comigo a magia daquele momento. A sensação do instante vivido. Pensei baixinho: Esqueçam! Vocês não tirarão de mim, nem sob tortura, qualquer sensação desse exato instante.  E mudo fiquei até a chegada da lua. Porque a melhor resposta, certamente, seria o meu silêncio.

E quantas outras primeiras vezes foram tatuadas em meu peito. Algumas reveladas em palavras e gestos e muitas outras guardadas em silêncio no peito.  
Nunca me esqueci daquele dia. Nunca comentei pra ninguém o que ficou guardado em mim por todos esses anos. E hoje, tive a mesma sensação daquele dia.  Senti o meu coração mais ritmado, as minhas pernas se envergando para frente e os meus olhos miúdos sorrindo com o vento. Eu estava vendo o que pensei ter visto há décadas. A única diferença daquela época, é que hoje não há mais a incerteza. E por mais clichê que seja a frase, sempre haverá um novo amanhecer. Mesmo depois de tantas luas.

Paulo Francisco



Balão azul

Jeitinho carioca



Adorava quando ela me chamava de crioulo. O som de sua voz chegava aos meus ouvidos, doce como a própria cana-de-açúcar na minha boca. Era um crioulo arrastado, cheio de charme e manso. Preenchia a casa, vestia-me a alma. Era impossível não atendê-la de imediato. E ela sabia que aquele chamado era ópio na veia.  Deixava-me cheio de vontade e aí  conseguia tudo o que queria. Apanhava o pote que a danada não conseguia alcançar no armário; abria os potes de conservas; entrava embaixo da cama como uma serpente desengonçada para procurar a tachinha do brinco que pulara de suas mãos. Era impossível negar qualquer coisa depois de ouvi-la com aquela canção melosa e sedutora.

Nunca tive apelido na rua. No máximo era chamado no diminutivo. Carioca adora esse sufixo afetivo - inho.  Ela também. Mas não para Paulinho, e sim para neguinho.  Não neguinho como pessoa indeterminada. Mas um neguinho apaixonado, doce, que chegava me deixar em êxtase com o tanto de carinho declarado.

O mais gostoso de tudo, é que não era a toda hora, a todo o momento.  Era de quando em vez e quando estávamos sozinhos. Do contrário, deixaria de ser uma coisa gostosa e se tornaria comum, oportunizando as outras pessoas a me chamarem assim. Era um crioulo, um neguinho, nunca gritado, mas cantado. Melodia amorosa e sedutora que me enchia de tesão. A coisa ficava melhor ainda, quando as quentes palavras vinham acompanhadas de cafuné na cabeça. Dedos raspando a cabeça era sinal de apelo amoroso. Carioca herdou o chamego dos nordestinos, que por sua vez herdaram de nossos índios. Filho de dois nordestinos, com um pé no terreiro africano e o outro nas clareiras indígenas, tem que gostar de chamegar. Impossível não gostar.

Dois episódios engraçados aconteceram com essa coisa de apelidos amorosos. Um aconteceu com uma colega de trabalho quando falava com seu marido ao telefone. Era sempre  um tal de docinho pra lá, um tal de docinho pra cá, que todos que estavam na sala se entreolhavam sempre. Até o dia que o camarada foi apresentado para nós e não perdemos a oportunidade de ficar o tempo todo chamando o homem de docinho.  Nunca mais ela o chamou assim na nossa frente. Carioca adora zoar.

O outro, menos engraçado aos olhos de quem narra esse texto, foi quando num restaurante, reunido com alguns amigos e amigas, depois de muitos risos e cervejas, chamei uma colega do trabalho de preta numa conversa distraída. E, sem perceber, acrescentei gasolina na fogueira, quando derrapou de minha garganta uma pretinha quase melódica. Não percebera a mancada até receber em casa uma sandália na testa.  O crioulo ficou roxo e levou o seu galo para o terreiro.  As cariocas são tão ciumentas.


Paulo Francisco


Coisa de casal




Em dias chuvosos a pedida é chocolate quente, filmes na televisão e cabaninha de edredom.  Será?!

- Paulo o que vamos fazer hoje?
- Hã!  
- Hã o quê?!
- O que o quê?
- Paulo, eu perguntei o que vamos fazer hoje.
- Nada...
- Tá brincannnndo? Não vamos ficar o dia todo enfurnados nessa cama... Assistindo a esses filmes antigos.
- Mas está chovendo! Tá frio! E tem chocolate quente.
- Você sabe que eu não gosto...
- Tem vinho também.

Vinte minutos de silêncio

- Paulo?
- Hã !
-  Você abre a garrafa de vinho pra mim?
- Claro, traz até aqui...
- Não acredito que você não vai levantar e ...
- Ok, o filme já está acabando...
- Deixa! Eu abro.
- Ok...
- Eu não aguento quando você  usa esse seu okey só pra não entrar numa discussão...
- Hum, hum
- Você está me ouvindo?
- Hum-hum.
- Viu! É assim que você faz

Alguns minutos de silêncio

- Pronnnnnto o filme acabou.
- Verdade?!
- O final foi emocionante... Adoro rever esses filmes dos anos sessenta.
- Eu detesto!
- O que você quer de verdade?
- Eu queria sair, ver gente, tomar ar puro...
- Mas está chovendo!
- Eu sei... Mas podemos pelo menos ir até o shopping... Eu tenho que comprar umas coisinhas.
- Tá explicado.

Silêncio profundo

- Você não vai...
- Claro que vou! Podemos jantar depois?
- Com certeza.  Ah! Eu li o seu texto Álibi.
- O que achou?

Silêncio por meia hora.



Paulo Francisco


Pra lá de Marraquexe




Sobre a mesa da varanda havia um gato. E sob ela um cão.  Enfeitando a parede branca, duas casinhas de passarinho de cada lado da porta de vidro colorido.  Sempre que passava em frente  à casa, fosse na ida ou na volta da escola, parava por alguns segundos  para admirá-la. Gostava  da aparente harmonia entre os bichos de cerâmica enfeitando a varanda da velha senhora  sentada olhando o nada. Nunca me esqueci dessa paisagem.

Outras paisagens se eternizaram em minha alma. Como da mulher baixinha, apelidada por nós, moleques da rua, de dona borboletinha Ela vendia as cocadas mais gostosas do mundo.  Nossa boca salivava todas as vezes que passava por nós com o seu cesto de vime. Sabíamos do tesouro escondido sob aquele pano branco.  Como poderia esquecer-me do menino de olhos coloridos, um de cada cor. Do outro que tinha os dedos anelar e mindinho unidos por uma membrana.  Arrepiava-me todas as vezes que ia brincar em sua casa e via pendurada na parede da sala uma palmatória que de quando em vez, era usada. Do carroceiro com sua égua chamada piranha. Quando eles passavam, era uma festa, uma algazarra só, gritávamos em coro o nome da égua. O animal nos dava a liberdade de transgredirmos, mesmo que inocentemente.

Algumas outras paisagens se tornaram referências de uma época. Como os caminhões e jipes do exército trafegando pelo bairro e soldados verdes com seus cassetetes em cada esquina. Éramos avisados o tempo todo pra não falar com gente estranha e muito menos aceitar balas ou qualquer outra coisa de quem a gente não conhecia. Mais tarde descubro o porquê de tantos avisos – era por causa dos comunistas que podiam nos raptar. Santa ignorância! Não éramos alvos e sim o motivo de tudo aquilo.  Falar com estranhos era perigoso – mal eles sabiam que o perigo rondava-nos há muito tempo, na falta de conhecimento, na pouca esperança de uma linha invisível.

Tudo isso veio à tona hoje, décadas depois, por ter passado em frente a uma casa com varanda onde sobre a mesinha branca de ferro tinha um gato malhado sentado e ao seu lado um cão marrom dormindo sobre um tapete listrado. Penduradas na parede de fora da varanda duas gaiolas com pássaros coloridos dentro. Foram eles que me chamaram a atenção para dentro da casa. Lá estava uma velha senhora sentada no meio da sala olhando para fora, olhando para o nada, olhando para mim.

Agora, em minha varanda nua, termino este texto olhando para a tela eletrônica, pensando nas velhas, pensando nos gatos, pensando nos cães, pensando nos pássaros. E nessa epifania colorida, vejo os meninos com heterocromia e sindactilia, geneticamente felizes.

Paulo Francisco


Álibi







Éramos musicais. Cheguei em  casa pensando no que Valéria Soares me disse, no carro, quando saímos da casa da mãe dela.

- Paulo, estava com saudades de você. Essa semana, ouvi Álibi e lembrei-me da gente na casa da Barra.
 Casa da Barra era a casa de seus pais, onde eu pousava quase todos os dias pra batermos papo e ouvir ou cantar as músicas preferidas. Era uma farra saudável e cultural.  Mais tarde Valéria e seu irmão Alfredo tornaram- se locutores de uma rádio local.

Respondi sem muito entusiasmo que gostava de cantarolar algumas músicas, mas que hoje eu já deixei de ser muita coisa na vida. O Manoel – marido dela - que estava conosco no carro perguntou curioso:

- Ué, bichão! Como eu nunca ouvi você cantando?

Valéria e Manoel:

- Ele cantava direitinho, tinha uma voz...

- Camarada, você tem que ir lá pra casa...fazer uma farra... Tomar um vinho, ouvir um violão...

Interrompi dizendo que hoje eu não cantava absolutamente nada.

Mas o que mais me deixou encafifado  foi o fato de saber que Álibi era do Djavan e  Bethânia tinha gravado, mas  não lembrava uma frase sequer da letra da música.  Cheguei à minha casa tentando me lembrar a letra e nada, deitei tentando e não brotava uma frase, não queria ouvi-la do disco, queria que ela surgisse na minha cabeça. Afinal, sou teimoso.

Mas em vez da música,  imagens surgiram como fantasmas.  E junto com elas, outras músicas  incidentais costuravam as minhas lembranças. Rostos, gestos, lugares antigos em preto e branco pintavam meus olhos, às vezes tristes, às vezes assustados; às vezes alegres.

 Fiz uma linha do tempo musical e a danada da letra não surgia. Até que um rosto já esquecido brotou como flor numa terra dura e batida. Entremeando entre as rachaduras da vida como erva daninha. E conforme os traços iam ficando mais nítidos, a tão esperada letra deixava a minha pele em carne viva.

E eu cantarolava: Havia mais que um desejo... Baixinho dizia:   A força do beijo/Por mais que vadia/Não sacia mais... Agora eu queria parar de lembrar, queria parar de cantar, mas não conseguia. Meus olhos lacrimejam teu corpo / Exposto à mentira do calor da ira... E quanto mais eu mergulhava a escuridão, mais brilhante a imagem se tornava. E quanto mais brilho no fundo da minha retina, mais explosões de sentimentos atingiam o meu peito. Rendi-me a imagem, a história e a música: Exposto à mentira do calor da ira/ No afã de um desejo que não contraíra/ No amor, a tortura está por um triz/ Mas a gente atura e até se mostra feliz/ Quando se tem o álibi/ De ter nascido ávido/ E convivido inválido /Mesmo sem ter havido...

Éramos musicais: Valéria, Manoel, Márcia, Paulo Henrique, Sandra e tantos outros jovens  amigos daquela época.  Menos ela  - o meu álibi de toda minha vida.




Paulo Francisco





Sob a luz da lua





- Tô indo!
- Vai não...Fica...
- Não trouxe roupa e amanhã tenho que sair cedo pra trabalhar
- Pega a minha camisa de jeans, vai ficar legal em você...
- Ok, e aproveito e uso uma de suas cuecas
Gargalhadas
- Tem uma gaveta cheia e outra com algumas na embalagem
- Não. Eu vou pra casa... Não trouxe o meu estojo de maquiagem, e você sabe que não saio sem a minha cara pintada.
Mais gargalhadas
- Mas você não precisa...
- Ué não é você que vive dizendo que mulher tem que andar pelo menos com a boca pintada?
- Touche!
-  Chama um taxi pra mim?
-  Não
- Você viu a minha sandália?
- Não
- Para com isso, você escondeu...
Gargalhadas
- Tá dentro do armário
- Chamou o táxi?
- Não
- Ok, eu chamo... Qual é o número?
Silêncio
- Deixa que eu chamo
- Você quer que eu te leve?
- Se você quiser...
- Tudo bem, vou colocar uma roupa.
Silêncio
- Cadê você?
- Tô no banheiro... Escuta, você vai continuar deixando a toalha embolada no chão?
- Vou! Vamos descer e esperar o táxi no portão... Você quer tomar mais uma taça de vinho?
- Não... vinho não combina com pasta de dente...
- Vamos?!
- Vamos.
No portão:
- Nossa! O céu está lindo
- Você e seu céu... Nunca vi ninguém gostar tanto de olhar para as estrelas
- Não reparou que a lua ficou nos espiando todo o tempo?
- Eu via a lua sim... Mas não sabia que ela espiava os outros pela janela
- Os outros não. Somente a mim...
Gargalhadas
- Sério! Ela tem ciúmes de mim.
- O táxi está chegando.
Dentro do carro silêncio total.
- É aqui moço...
- Vou descer com você.
- Como vai embora depois...
- Não vou. Vou ficar e dormir com você.
Gargalhadas
- Você é louco.
- Sou não. Amanhã não vou trabalhar, não tenho problema de repetir a mesma roupa e não uso maquiagem.
Risos e beijos
Mais tarde no quarto:
-  Fecha a janela... Não quero essa lua olhando pra gente.
Muitas gargalhadas em baixo do lençol.

Boa noite!


Paulo Francisco

Pranto






Engole o choro! Como engolir algo que quer ser expurgado? Aprendi ainda criança a chorar miúdo. Era um choro triturado, tímido, quase silencioso. Demorei pra entender que o meu choro era delação. E quem quer ser denunciado? Também demoraram pra entender que de quando em quando as comportas têm que ser abertas. Afinal, somos setenta por cento água. E mais que isso, morremos afogados ou nos transformamos numa melancia. E quem quer ser devorado pela gulosa Magali?! Eu não queria, então, chorava a conta-gotas.

No balcão da padaria preferida, entre um gole de café e uma olhadela aos outros cafeínados, um choro agudo e intermitente vinha em nossa direção aumentando os seus decibéis a cada segundo.  E a cada segundo o meus lábios manchados se esticavam num sorriso debochado. Lembrei-me do João Gabriel quando botava a boca no trombone e desafinava um choro pirracento.  Fazer o quê? Ele desafiava e exorcizava os meus fantasmas. Só tenho que agradecê-lo.  Mas quando o pequeno tenor passa por nós no colo de sua maestrina descabelada e irritada, a moça que estava ao meu lado exclama:

- Ahhhhhhhhhh se fosse meu filho!

Virei para o seu lado e a interrompi dizendo que chorar naquela idade faz bem para os pulmões. A mulher me olhou e, imediatamente, se inclinou para trás como se tivesse levado um tapa. Não foi minha intenção.

Mas voltando aos meus choros.  Eles deixaram de ser miúdos para serem escancarados, gritados, quase depravados. Chorei muito nessa vida. Talvez eu tenha mais chorado que sorrido. Porque alguns sorrisos contidos eram simplesmente um disfarce ao soluço engolido. Quem já não chorou ouvindo uma canção? Quem já não se desesperou em uma despedida? Ou por uma pura desilusão?

- Você andou chorando?

- Claro que não! Meus olhos ficam vermelhos em banhos demorados.

O chuveiro sempre fora o meu melhor amigo e cúmplice em alguns desesperos. Hoje, eu não preciso mais dele. Tenho o meu silêncio e o vento como companheiros nas horas tristes.

 E dos meus choros bandidos faço poesias.

 E dos meus choros velados faço canções.

Hoje eu não engulo o choro. O amparo com as mãos. E se não o amparo, deixo que reguem o meu caminho. Quem sabe não surja flores na aridez vivida.

Mas pior que engolir o choro era ouvir daqueles que amamos que homem não chora.

Ah, Chora sim!

Paulo Francisco

Meninos





Era uma sala de espera comum. Mesinha de centro com revistas e jornal. Cadeiras de palhinha e uma TV ligada num canal de documentários – naquele momento era a vez das formigas cortadeiras. Seria uma sala como outra qualquer se não fosse um menino sentado ao lado de sua mãe, divertindo-se com seus brinquedos de plástico.  Bonecos e carrinhos minúsculos passeavam em sua imaginação.

Abri a mochila e tirei um livro que ganhara no Natal passado da amiga Claudia Lemos. Fiquei com o livro na mão sem abri-lo, olhando para a televisão infestada de saúvas. Ouvia o zummmmm do carrinho do menino enquanto sua mãe falava ao celular e a voz melódica e dramática do locutor do documentário. Quase tudo naquela sala era paisagem repetida em minha memória, exceto pelo celular e pelas noticias da primeira página do jornal impecavelmente intacto sobre a mesa de vidro.

Olhei para a cara redonda e vermelha da mãe ao celular, comparei os seus traços com os do menino e por alguns segundos ouvi o locutor falar sobre a vida das cortadeiras: sistema agrícola, mutualismo, praga, devoradoras... Fechei os olhos pelo tempo de uma respiração profunda e esperançosa. Voltei ao livro. O fio da palavra de Bartolomeu Campos de Queirós. Um livro de poucas páginas, mas que me enganara na certeza de lê-lo na sala de espera de uma consulta médica.  Li e reli o primeiro texto:

¨ A vida é um fio,
a memória é seu novelo.
Enrolo - no novelo da memória –
o vivido e o sonhado.
Se desenrolo o novelo da memória,
Não sei se tudo foi real
ou não passou de fantasia. ¨

Voltei a fechar os olhos e fiquei com a escuridão mais tempo que o suspiro.  Só voltando com o ranger da porta e a aparição aflita do menino. Ele levantou a almofada e apanhou uma caixa de madeira escura – possivelmente era onde guardava o seu tesouro de plástico. Sorri com a surpresa do menino; sorri com a surpresa do livro em minhas mãos. Parei nas páginas seguintes com os dois anjos ocupando as duas folhas. Eram dois anjos dormindo.

Voltei pra casa lendo o livro e pensando na tal caixa de madeira. Olhei para o céu acinzentado, típico céu de fim de tarde do mês de março – promessa de tempestade e medo. E antes que eles chegassem, corri até o quarto. Com auxilio de uma escada, recuperei uma antiga caixa de madeira.

Fiquei ali, sentado na cama, olhando para a caixa e lembrando-me do menino.



Paulo Francisco

Diário




O pão meu de cada dia. Uma particularidade gastronômica: adoro pão! Perco-me numa padaria.  O pão de sal ou francês (que de francês não tem nada) é o meu preferido. Mas não dispenso um bom pão de cebola ou um italiano. O australiano é muito bom em tardes frias – talvez pelo cacau e pelo extrato de malte.

Quando havia inverno de verdade em Teresópolis – o clima por aqui anda mudando tanto que as casas estão substituindo a lareira por ventiladores e ares-condicionados – a casa cheirava a pão. Era uma diversão à parte ver a mãe fabricando para o nosso consumo vários tipos de pães. Só torcia o nariz quando via o pão preto. Aliás, da Rússia, o que eu mais gostava era da salada.  O pão preto é muito denso, não conseguia mastigá-lo.

Não sei ir ao centro do Rio sem visitar a padaria Bassil na Rua Sr. dos Passos. Lá tem as melhores esfihas e o melhor pão árabe que já experimentei.  Conheci esse lugar ainda moleque. Com relação ao pão de queijo só fui ter conhecimento já adulto.

Se Jean- Jacques Rousseau inventou ou não a frase dita por Maria Antonieta não me importava nenhum pouco, o que eu queria mesmo era experimentar o danado do brioche. Mas como no bairro  que morava as padarias só fabricavam o básico, demorei pra provar o tal do brioche – gostei e entendi o deboche da frase.

O pão que eu não engolia era o pão de açúcar. Ninguém me dava uma resposta convincente o porquê do nome.  Muito tempo depois, já adolescente alguém menciona José Vieira Fazenda e sua explicação do nome para o morro e engulo sem reclamar.

Eu ainda não sabia quem era Oswald de Andrade, mas já sabia quem era Caetano e conhecia o pão de açúcar; e foi ouvindo Escapulário musicado pelo cantor que descobri dois geniais:

¨No pão de assucar
De cada dia
Dai-nos Senhor
A poesia
De cada dia¨

E numa passagem rápida a São Paulo em 2011, tive a oportunidade de visitar o Museu da Língua Portuguesa homenageando Oswald de Andrade. E foi lá que li pela primeira vez a seguinte frase: ¨O pão de açúcar é um seio que o céu quer sugar ¨  .

Numa tarde de domingo, quando levava meu filho pra casa depois de irmos ao teatro infantil, eu ri e o invejei pela sua atitude. Parei para tomar um cafezinho e perguntei o que ele queria, na expectativa de um sorvete, refrigerante, biscoito ou um salgadinho. Mas o moleque me surpreendeu pedindo baguetinha com manteiga.  E lá fomos nós para a rodoviária com ele devorando os dois pães quentinhos sem o menor pudor.

Mas agora, duro mesmo, é engolir o pão que o diabo amassou.


Paulo Francisco

Reflexão





Nesses dias de feriado grande, de descompensação cronológica, de não ter que fazer nada, fico totalmente desorientado. Um jat lag emocional. Enquanto os insetos rodeiam a lâmpada, eu tento identificá-los como passatempo noturno. Divirto-me com as porradas dadas na parede pelos desengonçados coleópteros. As pálidas bruxas se espalham num balé frenético e suicida – há no ambiente uma lagartixa namorando o seu banquete.  Concomitante a orgia entomológica, há lá fora uma euforia juvenil quebrando o meu silêncio interno e noturno.

Cansado das dezenas teorias de conspirações, milhares de zumbis, vampiras e vampiros com cara de porcelana, lobos estilizados e mutilações absurdas, a televisão é desligada e a estante vasculhada.  Sempre há palavras para serem colhidas. Levo pra cama as poesias amorosas de Affonso Romano de Sant´Anna. Perco-me num labirinto de palavras e pensamentos. O dia chega e os meus olhos se fecham lentamente.

A campanhinha do telefone interrompe o sonho.  Acordo para mais um dia. Uma caneca de café esfumaçante ajuda a abrir a agenda mental. Descubro que terei que caminhar entre as gôndolas do mercado em busca do básico – a despensa está vazia.  Tento adiar o incomodo inventando outras tarefas, mas não por muito tempo.

Não gosto dos alimentos embalados com a cor azul. Prefiro os amarelos e vermelhos. Passeio pelos produtos orgânicos como um turista em museus estrangeiros.  Ando comendo menos com medo da grande quantidade de venenos e hormônios usados nos alimentos. Torna-se cara a consciência. Nada de transgênico, nada de hormônios, nada de corante. É quase impossível ser saudável nesse mundo tão rico e tão miserável ao mesmo tempo.

Quando vi uma senhora revirar o lixo da rua, catando latas e outros objetos existentes, deu-me um nó na garganta. A miserabilidade caminha ao nosso lado e fingimos não vê-la por medo ou por conveniência, não sei.  Ela não era, com certeza, uma artesã excêntrica, recolhendo recicláveis para criar obras de arte.  As chamadas artes sustentáveis de artistas do mundo inteiro expostas em galerias famosas e que são admiradas por uns poucos favorecidos. Não, não mesmo, ela era uma catadora de centavos para completar a ¨renda ¨  da família. E, ainda assim, a outra Senhora faz questão de mostrar poder com suas vestimentas compradas parceladas no cartão. Tão miserável de espírito quanto aqueles que não têm o que comer. Tenta disfarçar a sua pobreza de espírito camuflando sua pele de bruxa.

Nesses dias de feriado grande, de ociosidade premiada, de compromissos guardados, torno-me mais racional. Mesmo no Carnaval.


Paulo Francisco



  

Imagem





O espelho foi feito para lembrar-nos de que o tempo passa.  Hoje, pela manhã, ao fazer a barba, lembrei-me do poema retrato de Cecília Meireles e pensei:  Também não tinha Cecília, este rosto de hoje.  Com a cara branca de espuma, restaram-me antes da navalha, meus olhos profundos e meus lábios sedentos de amor. Eles ainda não estão vazios, ainda não estão amargos – pensei parado com a lâmina no ar.

Minhas mãos seguiram ainda firmes, o caminho da espuma. Continuei recitando, silenciosamente, o poema de Cecília:

¨Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?¨

Também voltei no tempo, além do espelho, quando achava engraçado as caretas do meu pai  diante de um pequeno espelho redondo. Sua face antes assustadoramente negra de pelos encontrava-se lisa e vermelha depois das precisas navalhadas na carne. Cena que mais tarde meu filho repetia em gestos teatrais ao ver-me nesse rito matinal. Hoje, restaram-me o riso e o ardor da saudade.

Talvez o espelho não mostre somente a passagem do tempo; talvez ele não exista somente para nos olharmos. Talvez ele exista para revelar aquilo que não queremos ver ou ser.

Não acreditei quando me vi no espelho. Estava babando de ódio. Vermelho e deformado como se estivesse possuído. Uma energia negativa que jamais tinha sentido. Fiquei exausto em poucos segundos. Fui para debaixo do chuveiro e ali fiquei por muito tempo. Livrei-me daquela armadura do mal e ali mesmo pedi perdão a Deus. Não sabia, até então, que era capaz de acumular tanta energia.  Um Big Bang emocional. Fiquei com medo de o que vira no espelho fosse a minha outra alma -  aquela que só Jacobina de Machado tinha visto.


Surgiram outros espelhos em minha vida. E neles, sempre me vi por inteiro. Mas foi nas retinas dos olhos de meu filho que mi vi mais verdadeiro.

Paulo Francisco

Menino do vento





O vento sempre esteve em seu caminho. Mas era o vento oeste que mais o fascinava. Talvez fosse pela delicadeza de Zéfiro de Bouguereau seduzindo a deusa Chloris.

Foi através do vento que a sentiu pela primeira vez. O seu perfume penetrara suavemente pelas suas narinas fazendo-o virar a cabeça em sua direção. E lá estava ela exalando sedução. Seria zéfiro presenteando-o com tão bela imagem?

Sentado na sacada de seu quarto nas longas madrugadas frias, ele sentia as mãos geladas e pesadas de Bóreas.  Nunca gostara do vento norte. Sempre achara que foi ele que a levou para sempre, numa noite sem estrelas. E por muito tempo, sentado em sua sacada, recitava a mesma poesia de Florbela – Cantigas leva-as o vento...:

¨A lembrança dos teus beijos
Inda na minh´alma existe,
Como um perfume perdido,
Nas folhas de um livro triste,

Perfume tão esquisito
E de tal suavidade,
Que mesmo desapar´cido
Revive numa saudade!¨

Mas o vento sempre fora mais alegre do que triste. E os moleques do bairro chamavam o vento numa canção típica da região:

¨Vem vento caxinguelê,
Cachorro do mato qué te mordê.¨

E o vento vinha e as pipas subiam ao céu para a alegria da molecada.

Mas quando o vento chegava forte e repentino, as mulheres corriam até o quintal para pegar os lençóis branquinhos cheirando a anil. Ficava parado, olhando-os dançando freneticamente no ar, dificultando as suas retiradas. De quando em vez uma saia subia para a alegria de seus olhos curiosos.

Em casa, adorava fabricar assovios estranhos assoprando contra as paletas do ventilador de metal. Perdia-se em namoro a espera do vento gelado do lento vaivém do disco gradeado. Enfeitava o metálico com fitas de plástico somente para destruir o silêncio gelado. Ouvia dos mais velhos o perigo da mutilação causada pelas hélices do aparelho. Então, escondido na sua própria sombra, empunhando uma vareta de bambu, tentava a qualquer custo – até mesmo por uma surra -  parar o perigoso gerador de vento, numa imaginária aventura épica entre o homem e o dragão.  Mas o grito do monstro sendo abatido ecoava pela casa delatando sua aventura. Corria para bem longe de seu crime, numa tentativa inútil de ser inocentado. Mas o seu nome, levado pelo vento, atravessava toda a casa esbarrando nos móveis pesados e brilhantes de todos os cômodos até o escuro de seu armário. Todos sabiam quem era o culpado das piores travessuras daquele lugar.

- Pauloooooooooooooooooooooooooooooo!!!!!!!!!!!!!


O vento sempre esteve presente em seu caminho.

Paulo Francisco




Planando




A sensação era de estar flutuando. Quantas vezes achei que podia voar. Não o voo migratório dos pássaros em busca da sobrevivência, mas de suas penas ao vento, sem direção, num flutuar empurrado por correntes termais. Um voo desconhecido e sem medo.  Não, nada de ser piloto de aeronaves, astronautas em viagens estelares. O meu céu estava em minhas mãos e a minha viagem sempre fora solitária em minha retina. Já andava com as minhas próprias pernas, os meus mergulhos eram infinitos e as minhas asas não eram de cera.

A sensação era de estar sempre flutuando. Um flutuar sem direção, sem controle, uma viagem aflita e sem chão. Dias, meses sem a menor previsão de aterrissagem.  Não era mais o voo da pena. Era apenas a cegueira da realidade. Era a incerteza no olho do furacão, no epicentro da indignação. E aquele céu que sempre estivera em minhas mãos, se desfez entre os meus dedos, se perdera de minha retina, e as estrelas nele existentes apagaram-se para sempre.

 O azul da pérsia que outrora estava cravejado de sonhos se fora tingido de negro, engolido pela boca da bruxa.

Ainda sonho; ainda flutuo. Mas a intensidade é outra. Não é mais um voo longo, ou um flutuar sem direção. E nem poderia. Os pés calejaram-se e os braços não se sustentam por tanto tempo no ar. Mas, mesmo assim, ainda sonho e flutuo num céu desenhado pelos meus olhos miúdos e menos fúteis.


Hoje, pela manhã, acordei com a sensação de estar pisando no ar. O meu corpo estava mais leve e os meus olhos desenhavam nuvens. Não era um voo de sonhos; um flutuar serenado. Não havia estrelas e o céu escureceu como num eclipse total. E quando a lua se foi, meus olhos enxergaram uma tarde azul e fresca. Uma nova sensação brotou da alma. O vento chegou à varanda da minha casa trazendo-me novos sonhos, novas cores. Um sentimento que há muito não sentia.  A sensação é de estar flutuando na direção certa.

Paulo Francisco

Leituras




 Os sinais não estavam claros. Não conseguia acompanhar o que diziam. A minha curiosidade limitou-se em imaginar os possíveis diálogos entre eles.  LIBRAS não faz parte do meu vocabulário. Eles sorriam, conversavam descontraidamente.  Distraía-me naquele universo de mãos, olhos e gestos aflitos. Tornei-me o Maxwell Smart  no mais velho disfarce da leitura do jornal sentado num café. Tentava saber o que eles tanto falavam naquela esquina cinza e morna. Os jovens são destemidos, alheios ao perigo. De repente se espalharam, desintegram-se aos meus olhos.  Fiquei com a interrogação, o disfarce e um vazio imenso no coração. Não gosto de história incompleta.

Os sinais de trânsito sempre me fascinaram. Ficava olhando pela janela do carro as placas indicativas. Contava os quilômetros rodados não pelo velocímetro, mas pelas placas à beira da estrada.  Proibido isso, proibido aquilo.  Altura máxima, largura máxima, velocidade máxima.  Siga em frente. Vire à direita. E de repente ele não diminuiu a velocidade, passou da curva e eu do para-brisa.  Acordei na maca de uma clinica.  Não gosto de histórias com tragédias, mesmo com final feliz.

A bandeira vermelha sinalizava perigo. Não entrávamos na água.  Mas não arredávamos os pés da areia. Jogávamos carta e molhávamos os nossos corpos na margem da praia. Mas se a vontade era de estar dentro d’água, saiamos à procura de uma bandeira branca – soube que agora é verde.  Ela chegou molhada com uma bandeira vermelha debaixo do braço.  Achei estranho. Não sabia que ela militava. Tinha acabado de chegar de uma manifestação no Centro da cidade.  Eu estava em casa  assistindo a tudo pela TV.   Já estava agorafóbico e ainda não sabia. As histórias de pânicos nunca foram as minhas preferidas.

Os sinais nunca eram claros para mim. A matemática não me pertencia, não me unia. Não havia interseção nos meus caminhos de sonhos, Os colchetes estavam nas minhas roupas e não no meu raciocínio. A realidade e o devaneio caminhavam juntos. Estava sempre somando. Demorei a entender ou a aceitar a subtração. E quando ela chegou passei a entender as manipulações formais: as lineares, as abstratas, as elementares e a universal. Contido ou não contido eis a questão. E naturalmente eu não pertencia aos delírios dela.  Tornamos-nos conjuntos vazios. Não nos pertencíamos mais. Também não gosto de histórias sem final feliz.

Mas foi um sinal em sua coxa que me chamou atenção. Adoro histórias de mistério.


Paulo Francisco


Samurai




Em tardes molhadas, repito os bolinhos de chuva do passado.  Não falhava. Tarde chuvosa, cárcere privado. Sessão da tarde e jogos de tabuleiro para diminuir a agitação represada.

O fim de semana foi de céu zangado e muito choro. Leituras curtas, muitos filmes e a certeza do bolinho de chuva com canela e açúcar no final da tarde. Mato a minha ansiedade num seppuku adocicado. E na despensa o indispensável para tardes chuvosas se transformarem em açúcar e haraquiri.

Neste final de semana que passou, a chuva deixou de ser confete, para ser transformar em grade. Fiquei preso em casa olhando o mundo pela tela do computador. Impossível sair de casa com relâmpagos e trovoadas. Restaram-me os doces, os romances, as comédias e as ficções.  Fazer o quê? Se ela resolveu permanecer em minha janela. Nada de banho de chuva, de uma corridinha até o ponto, da campainha tocando. Tornei-me uma ilha cercada de chuva.

Mas hoje foi diferente.  Amanheceu menos aguado. Nublado, mas sem chuva. Saí num caminhar sem setas. Queria ver gente e cores; precisava sentir o cheiro do mato, ouvir o vento açoitando as folhas, mesmo que por pouco tempo – a chuva estava prevista -  eu não queria me encharcar de surpresa. Voltei pra casa menos seco e mais assustado.  Júpiter anunciava a sua fúria a toda força.

Tornei-me novamente ilha. Um prisioneiro de Zeus.

Era quase um tratado. Em dias de chuvas fortes nada de escola. Estávamos perdoados por dormir até mais tarde.  O melhor da chuva era poder, depois dela, molhar uns aos outros numa festa coletiva. Festejávamos a nossa liberdade depois de dias de cárceres privados. Os barquinhos de papel previamente prontos com as folhas de cadernos eram colocados na correnteza formada rente ao meio-fio. Pura diversão.

O sol sempre chegava tímido, dourando as coisas, mostrando o que antes estava escondido: caracóis deslizando nas folhas verdes, sapos pulando de um lado para o outro, assustados com tanta gritaria.  As janelas se abriam adornadas por lençóis, tapetes ou qualquer outra coisa que precisasse de ar e de sol.  As moças gordas, e também as magras, debruçavam-se nas janelas junto às coisas espalhadas - havia esperança iluminando seus olhos e corações.


Hoje, em tardes molhadas, não tenho a mesma paisagem, não repito os ritos do passado, exceto pelos bolinhos de chuva e poesias.

Paulo Francisco

Passatempo





Os nécessaires dos meus amigos estão mais pesados. Eles estão ficando calvos e grisalhos. Disfarçam a genética rapando a cabeça. Mas o disfarce tem vida curta. Logo-logo, o desenho de suas calvícies brota adornado por penugens brancas. Para os mais incomodados é necessário o cortador de cabelo na cartucheira. A qualquer momento eles sacam a máquina e engatilham o nível desejado para a satisfação de seus olhos, e em poucos minutos estão lisos como uma bola de bilhar.

Entrei no carro da Valéria e fui logo esfregando as minhas mãos na cabeça raspada do Manoel. Ele ri e compara a minha atitude com a da sua filha.  Estávamos indo para a casa de mais um careca – o meu compadre. Não me senti um estranho no ninho. Estava com o cabelo bem baixo. Dias antes, cheguei ao cabeleireiro ( também de cabeça raspada) logo dizendo:

-  Adriano, baixinho, baixinho mesmo, quase máquina.

Ele riu e exclamou:

- Vou usar a tesoura... depois não terá volta!

O encarei pelo espelho e confirmei sorrindo, acenando a cabeça. Meia-hora depois estava mais leve alguns gramas.

 Saquei da mochila a minha boina e segui em frente.  Uso a boina não para esconder e sim para aparecer. Tenho algumas – quase uma coleção. Entendo as mulheres com suas bolsas e sapatos.  Também entendo seus nécessaires abarrotados.

Não uso máquina para cortar cabelo, nem aparelho elétrico para barbear-me – sou lenhador da minha própria face. Foram feitos com a navalha as cicatrizes existentes.  No meu nécessaire não há eletrônicos.

Quando entrei em seu carro, ela olhou-me e disse:

- Ficou bom, mas gosto dele maior... Adoro sua mecha branca. É tão charmosa...

Ri e respondi:

- Ele cresce

Pensei:  Ainda bem que a genética ajudou-me nesse aspecto. Ou seriam os hormônios?


Seguimos pela estrada com a bagagem mais leve.


Paulo Francisco