Estacionando











Outono. Não temos árvores peladas nesta estação e tampouco tapetes de folhas amarelas e quebradiças. O nosso outono não fica pálido – se mantém verde. Só sabemos que estamos nele, porque temos as visitas do verão não querendo ir embora e do inverno marcando território. Esta indecisão é sinônimo do outono. Ele não é constante, marcante, como em outros lugares; podemos chamá-lo de estação hiperativa - levada mesmo.
As noites outonais são de céu anilado e rendado por estrelas volúveis. A manhã, sempre uma surpresa, ora nublada, ora ensolarada – não tente adivinhá-la.
Nunca se sabe como será o dia, então, o melhor é ter sempre um abrigo na bolsa, para aqueles dias de indecisões: sol e chuva.
O sol pode ser de extremo verão ou simplesmente brando, agradável. As chuvas já não são mais em monções e, sim, numa cortina repentina quase invernal.
As sombras são convidativas e refrescantes, principalmente ao meio dia ensolarado.
O nosso outono é quente, latino. Tem flores, frutos e sementes.
Se eu tivesse que comparar a minha vida com uma estação, certamente, seria o outono.



Paulo Francisco




Resquícios







Fechava os meus olhos na esperança de alcançar. Não perdia a mania de achar que os meus pensamentos tinham superpoderes.  Achava que se desejasse com força e do fundo do meu coração alcançaria o que queria. Poucas foram as vezes que o desejo acabou em decepção.

Acho que essa mania de ¨superpoderes¨ veio das brincadeiras de criança. Lembro-me bem de uma técnica infalível de conseguir tirar boas notas nas provas bimestrais ou de pelo menos delas não serem tão baixas. Antes de deitar-me, sentava em minha cama e fazia em pensamento, a rotina do dia seguinte. Imaginava todo o meu itinerário indo e vindo do colégio.  Construía uma calmaria enfeitada de coisas boas e sorrisos. Como eu não era tão ruim como aluno, acabava acreditando que o meu pensamento era poderoso.

Depois, já quase adulto, fechava os olhos na esperança de voltar a ter aquele poder de alcançar. Ah, quantas vezes eu acreditei inutilmente que era capaz.  Cerrava os olhos tão forte que ao abri-los ficava zonzo e cego por alguns segundos. E quando tudo voltava à realidade, meus olhos marejavam em decepção e claridade.

Mais tarde, já não pensava em alcançar somente com os meus pensamentos infalíveis – agia com a razão que em mim foi construída as duras penas pelo tempo – ir à luta pra conquistar. Vida humana ainda de capa e máscara. Ninguém escapa de sonhar.

Resquícios são resquícios – ficam.

Permaneceu em mim a ingenuidade de achar que os meus pensamentos chegariam à lua, que as estrelas dançariam com a minha canção de amor. Cheguei a acreditar que ela me ligaria por nada, simplesmente porque estava pensando em amá-la naquele momento. O telefone continuou mudo até que eu tomasse a iniciativa – pura realidade adulta e amores infantis. Ninguém escapa da criança que um dia já foi.

Hoje, fechei os meus olhos na esperança de alcançar. Voltei no tempo e recriei um novo caminho.   Não sei se vou conseguir. Mas se não tento como sabê-lo?


Paulo Francisco


Esconderijo


Era a maior felicidade do mundo quando encontrava o que eu achava ter perdido.  Obviamente não o tinha perdido, simplesmente esquecia onde estava guardado. Foi assim a minha vida inteira. Entrava em desespero pelo menor descuido. Tornava-me um louco à procura do invisível.

A sensação da perda é indescritível. O desespero batia forte na alma. Mostrava-me desequilibrado e mais perdido que a minha própria perda momentânea.  Próprio de quem anda distraído.

Sentir-se perdido. Era desesperador quando a mão de quem me segurava e me guardava escapava de mim. Olhava ao redor e um vazio ocupava o meu peito pelo medo do desconhecido. Tudo ficava distante e ao mesmo tempo grande, monstruosamente grande.

Antes eu gritava e chorava até ser encontrado. O meu grito e o meu choro serviam de alerta. Eram sinais enviados ao mundo que eu estava literalmente perdido. Eu ainda choro. Mas somente quando estou só. Choro sozinho pra não ser achado. Choro e grito por um amor partido, por um amor perdido. Choro pelo abandono.

Hoje, eu encontrei algo que há muito estava esquecido. Fiquei surpreso por encontrá-lo num lugar tão obvio em minha vida. Foi a maior felicidade do mundo quando eu encontrei o que achava estar perdido pra sempre. Obviamente não o tinha perdido, simplesmente esqueci-me de onde o tinha guardado – em meu coração.



Paulo Francisco

Fragmentos




Era nítido o amor da menininha pelo seu pai. Ela o abraçava, beijava suas bochechas, mexia em sua barbicha como se ele fosse o seu bicho de pelúcia. Grudava em seu pescoço como se uma ventania estivesse pra chegar. Também era nítido o medo da perda.  Fiquei ali, quase estático, observando os dois na água da piscina. O pescoço paterno era a boia de salva-vidas da filha, e os seus ombros se transformaram em trampolim para a menina sorridente. Era linda aquela festa aquática. Um amor em borbulhas refrescantes. Fiquei cada vez mais curioso com aquela cena molhada e azul.

Continuei a olhar através de minhas lentes espelhadas.

Ao saírem da água, o homem imediatamente apanhou a toalha no encosto da cadeira de plástico e começou carinhosamente a enxugá-la ainda de maiô. Colocou-lhe um shortinho azul, uma blusa rosa enfeitada com uma flor. Entregou pra ela uma garrafinha - possivelmente com água e de mãos dadas, seguiram para a portaria do clube.

Não consegui parar de segui-los com os meus olhos curiosos.

Já na portaria, ele a trouxe para o seu colo e ficou parado por alguns segundos até um carro vermelho parar próximo aos dois. De dentro do carro saiu uma mulher morena, alta e bonita. Ela aproximou-se da menininha sorrindo e falou qualquer coisa que a fez grudar mais forte no pescoço daquele homem não menos bonito, não menos moreno e não menos alto.  Seria um encontro lindo se não fosse o choro da garotinha. Ali, pensei, há uma família incompleta. O carro partiu, o homem ficou e a minha história não acabou.

Quando o menininho olhou para o seu pai chegando à plataforma de desembarque da rodoviária, gritou como os fãs de rock gritam ao verem os seus ídolos. Todos riram com a nítida felicidade da criaturinha e de seu pai quando se encontraram. Era felicidade explodida em beijinho e abraços.  A cena apaixonada continuou por mais alguns segundos e se desfez  em silêncio quando a mochila do menino foi transferida das mãos maternas para o ombro paterno e cada qual seguiu em uma direção. Ficou nítida a falta de diálogo entre eles. Estava claro que algo se perdera. O homem subiu a escada rolante, a mulher desapareceu entre a multidão de mãos vazias e a minha história não teve fim.

No lugar do relógio, ele tinha uma pulseira de couro com uma placa de metal. Tinha um nome escrito nela. Que nome estaria escrito ali? A minha curiosidade é maior que a minha timidez. Dei um jeito de ler o nome gravado na chapa brilhante: Daniela.

E lá vem ela!

Daniela chegou com beijo estalado, com abraço apertado e muito calor humano. No mesmo pulso havia uma pulseira igual. O nome dele era Ricardo.
Seguiram apaixonados e abraçados. Sumiram na primeira esquina. Deixaram a minha história no meio do caminho.

No banco da praça ainda havia história. Ela lia um pequeno livro, ele fazia palavras-cruzadas. Seus cabelos registravam em fios brancos, possivelmente, um mesmo caminho. Não precisava adivinhá-los. Eram marcas registradas de uma vida inteira.

Ela o segurava pelo cotovelo quando decidiram ir embora. Sorri, ao vê-los partindo. Não saberia escrevê-los. Estavam muito longe de mim.

Ela carregava nos braços um buquê de rosas amarelas. Era seu aniversário? Ganhou de seu amigo? Era o começo de uma nova história?  Eu jamais saberia. A mulher de vermelho entrou num táxi e eu continuei parado, absorto pela leveza encontrada, tentando adivinhar qual seria a nossa história se não existissem as rosas em seus braços.

Ele andava rápido entre a multidão. Carregava uma pasta de couro surrada numa mão e um pacote na outra. Era um funcionário público? Teria um novo encontro? O seu passado o condenava? Ainda tinha um futuro? O seu presente é tranquilo? Pra onde estaria indo? A sua história se cruzava com a minha? Não saberei antes de reencontrá-lo.

Depois de muitos olhares, de muitos passos, de muitas interrogações, o dia chegou ao fim. As nuvens escureceram, os pássaros foram dormir, as luzes se ascenderam e muitas outras histórias continuavam sem mim.


Ao voltar para casa corri ao espelho para certificar-me se ainda estava inteiro. Estava, eu estava sim!



Paulo Francisco

Incompleto


















(Eu fiz algo de errado). Não é uma pergunta não, é uma afirmativa. É simplesmente uma frase que eu ainda não coloquei o sinal final. Uma interrogação; uma exclamação; um ponto. Ainda não a completei, ainda não sei como terminá-la.

Tem tantas coisas que deixamos incompletas por pura distração ou por não saber como. Somos assim: complexos e ao mesmo tempo queremos que o outro seja simples aos nossos olhos. Como retirar o cílio grudado na maçã de seu rosto se a lágrima sempre o move de lugar?

Como esperar um sorriso de quem anda sempre coberta por um véu? Sempre haverá atitudes complexas em situações simples – não abrimos uma garrafa de vinho rodando a rolha, precisamos de um instrumento adequado para puxá-la.

Mas se não conseguimos tirar o cílio com os dedos, podemos secar as lágrimas com beijos e transferi-lo para os nossos lábios. O sorriso? Basta levantar o véu. E a rolha, caso não tenha o instrumento certo para puxá-la, empurramo-la para dentro da garrafa - o que importa é o liquido.

Coisas simples podem ser feitas para situações que pensamos ser tão complexas. Às vezes o inatingível não é o céu e sim o levantar voo.

Quando o outro faz algo que não gostamos, devemos ou não falar sobre o assunto?

Pois é... como terminar a frase se o cílio continua na face, o véu ainda lhe cobre por inteiro e o vinho continua intacto?

Como posso terminar algo que não sei como começou.

É sempre assim, ela sabe como me atingir. Deixa-me aflito e impossibilitado de argumentar. Porque não posso argumentar o que não sei.

O silêncio é o pior das atitudes. Sempre soube disso. Sempre provoquei as reações mais descontroladas nas pessoas – e eu era, ainda, um moleque.

Então o silêncio não terá em mim um descontrole. O silêncio me faz pensar.

Eu fico, aqui, amadurecendo a possibilidade de terminar o que comecei.

(Eu fiz algo de errado)

Quando o silêncio terminar eu volto a escrever.

Quem sabe eu descubra que além de final, a frase está faltando uma ou duas palavras.

Paulo Francisco

O sorriso de Cecília










Voltando pra casa, totalmente aéreo como sempre, lembrei-me de uma história que aconteceu comigo num passado distante. Sorri ao me lembrar do sorriso de Cecília.

Eu ficava ansioso até avistar o seu brilho. Assim que a via sorrindo ou não, meu coração acelerava – era um coração apaixonado. Ela era a moça do sorriso bonito que me fazia feliz. Sempre no mesmo horário, no mesmo dia, eu a procurava pela janela do ônibus. Ela fazia parte da paisagem do meu caminho de volta pra casa. Ela era o meu ponto de referência, a certeza que o dia existiu em céu iluminado.

Gostava de diversificar o meu itinerário e, também, o meio de transporte, às vezes de carro, outras de ônibus e muitas vezes a pé. Sempre gostei de caminhar em viagens solitárias, mas, às quartas-feiras, nada de andar a pé, nada de pegar carona, nada de companhia. Às quartas-feiras eu queria estar dentro de um ônibus sozinho e em sonhos. Era quando eu a via, parada, distraída em pensamentos secretos; ou alegre, sorrindo, quando acompanhada de amigas. As quartas-feiras, eu a namorava em segredo. Desejava o seu sorriso. Enxergava o meu futuro.

Por sorte era parada obrigatória do ônibus. Era o ponto em que o fiscal da linha ficava com a sua prancheta, anotando os horários de todos os ônibus e a numeração da roleta. Quando o fiscal resolvia conversar com o motorista ou simplesmente não deixar o ônibus prosseguir a viagem de imediato, por estar muito adiantado, eu ganhava o dia – podia, então, ficar mais tempo desenhando o seu rosto em mim. Tatuava-a em minhas retinas.

Ela era linda, cabelos negros compridos, olhos castanhos e, tinha o mais belo sorriso visto até então por mim.

Eu me perguntava em silêncio: quantos anos ela teria? Onde ela morava? Seria num castelo? Estava muito longe dali? Qual seria o seu nome? Ainda não sabia o nome daquela que me fascinava com seu sorriso. Pensava em vários, mas nenhum deles combinava de verdade com o tom de sua pele, com a cor e o formato de seus olhos. De repente uma explosão de cores, e estrelas invisíveis desenharam, num céu azul, o seu nome: Cecília. Eu a batizei de Cecília.

Foram meses de amor platônico. Ela no ponto de ônibus e eu dentro dele.

Certo dia, ela me notou. Desviou os seus olhos e quando voltou com o seu lindo olhar, percebera que ainda estava vidrado nela e aí ela sorriu. Ela sorriu, e eu a retribuí com o meu sorriso tímido, amarelo de tanta vergonha por ter sido flagrado, como um bobo, olhando uma jóia. E ela era uma joia!

Não sei a cor que ficou o meu corpo, se roxo ou vermelho, mas, certamente não tinha a mesma coloração depois que todo o meu sangue parou em minha cara. Sempre que era apanhado por algo eu mudava de cor. Eu me denunciava, era o meu próprio delator.

Ela notou a minha admiração e a minha timidez estampada em minha cara de sorriso amarelo e foi gentil em sorrir novamente para mim. Cecília era, além de tudo, a delicadeza em minha vida.

Em outros dias, eu me distraia com outras coisas, mas às quartas-feiras não me concentrava em nada que não fosse o rosto de Cecília. Eu desejava aquele sorriso, achava que ela seria a minha namorada e, foi, por muito tempo, a namorada que me permitia sonhar.

Eu já tinha experimentado viajar naquele ônibus em outros dias, mas ela nunca estava no ponto desejado. Então, conformei-me em vê-la semanalmente. Era o que a felicidade tinha planejado pra mim, e eu aceitava de bom grado.

Mas um dia, tudo podia acontecer, como aconteceu: estava em minha quarta-feira rotineira, quando vejo a minha felicidade nos braços de outro homem. Ela tinha um amor; ela já era a princesa de outro. Ela não era minha; ela nunca fora minha. Empalideci, todo o sangue em mim escorreu para os meus pés, que se transformaram em pés-de-chumbo. Torci para o fiscal liberar o mais rápido possível aquele transporte maldito. Transporte de minha morte. Queria e precisava sair daquela paisagem cinza e desfocada. Paisagem afogada em decepção.

Ao chegar próximo ao meu ponto de parada, pedi a moça ao lado que puxasse a cordinha da cigarra, pois eu não a alcançava ainda, e segui para casa entristecido e com raiva. Uma mistura de sentimentos que ainda não tinha experimentado – um sentimento amargo como café sem açúcar; um sentimento pesado como o fardo que ainda iria, por muitas vezes, carregar. Ao chegar à casa de minha tia, ela vendo-me triste, perguntou o que estava acontecendo comigo e eu nada disse. Fui para o quarto fazer as minhas lições de casa. Não chorei porque não tinha o que chorar. Fiquei triste por ter deixado o meu sonho escapar. Fiquei mudo porque não sabia o que gritar.

Cecília foi a minha primeira aventura amorosa e por sua causa premeditei o meu primeiro crime passional. Mas como a vida é bela, mais tarde tirei o uniforme, peguei o meu pião e fui brincar com os meus amigos.

Sempre quando me lembro de Cecília, sorrio – ela fez parte, sem saber, de minha agitada infância.

Mas qual seria o seu verdadeiro nome? O que importa isso agora! Até há pouco tempo, algumas só me diziam os seus nomes verdadeiros quando já estavam em minha cama.

Mas nenhuma delas, certamente, teve o mesmo sorriso de Cecília.



Paulo Francisco


Transparência



Já amei em segredo. Hoje não mais. Meu amor é escancarado. Quando amo confesso. Estou mais sem vergonha, mais descarado para o amor. Sei que o não já existe em tudo e, o que tenho que fazer é vencê-lo com um sim. Nunca aceito um talvez. O talvez, pra mim é um não disfarçado. Não perco tempo com a incerteza. Prefiro o sim, mesmo que ele se transforme depois num não. Pelo menos tentei.

Se quero, digo. Não permito rodeios quando a questão é o amor. Não existe meio amor, meia paixão. Estes sentimentos quando vem, vem por inteiro, como chuva de verão, de uma única vez, sem promessas e pequenos avisos e nos deixa encharcados de felicidade.

Ele pode até estar embrulhado no papel de Sonho de valsas que desenrolamos com a delicadeza de um artefato sagrado. Sabemos com certeza da existência de um bombom redondo, com uma camada fina de chocolate e um biscoito crocante cheio de açúcar e aroma.

O amor é como um bombom desejado que derrete em nossa boca e envolve a nossa língua na mais pura calda de sentimento – quente, cheiroso e úmido. Comemos salivando, sentimos descer numa deglutição lenta, quase num slow motion.

Guardamos o papel brilhante, como prova que devoramos o mais gostoso dos sabores. Guardamo-los dentro de cadernos ou livros. Guardamo-los aberto como se quiséssemos preservá-los por inteiro. Papel brilhante de bombom entre páginas de um livro é registro de presente amado; é afeto em rosa e preto; é marcador de um capitulo sem fim.

Ontem ao pegar um livro na estante, datado de algumas décadas atrás, encontrei em cada capítulo um marcador em preto e rosa. Sorri. Foi um sorriso lento de passado. Deixei-os lá, nas mesmas páginas, intactos, brilhantes, vivos.

Já amei em segredo. Hoje não mais. E os livros que leio registram apenas minhas digitais. E os sonhos acompanhados com vinho são devorados em valsas de noivas, deixando no ar aromas derretidos em paixão.


Paulo Francisco

Pais e filhos





















Todos pensam que o bar é minha biblioteca. Confesso que botecos de quinta são bons sebos. Mas a minha sala de leitura é de céu aberto - não há silêncio; tem muita gente e cada um tem o seu jeito peculiar de ser. São exemplares únicos. Cada qual no seu formato. São raros e não tem fim. Adoro pontos de ônibus. Neles uso, muita vezes, a minha caneta e o meu bloco de anotações. É ali que consigo ter uma variedade de almas, pensamentos diversos e metas diferentes. Sou um abelhudo num ponto qualquer. Não me incomodo em esperar – nunca tenho pressa quando estou à espera de um ônibus e de uma história.

Hoje, em particular, fiquei um tempo enorme observando um garoto e seu pai. Pela quantidade de porquês, o moleque não passava de oito anos. Ele estava ávido por respostas. O menino, agitadíssimo, tentava tirar o máximo de proveito daquele interrogatório. O pai era a sua biblioteca; a sua internet.

Clica no pai e aparecerá uma resposta e a imaginação fluirá.

Parei a minha leitura e fiquei silencioso, atento às perguntas do menino:

- Pai, por que não temos mais dinossauros?

Fiquei esperando a resposta do camarada, que estava de cócoras, encostado ao muro, bem próximo ao filho.

- Bem...a tartaruga e o jacaré são dinossauros sobreviventes...

- Sããããão!?

- Sim, naquela época eles já existiam e eram enormes.

- Masss pai, o tiranossauro rex era um cachorro?

O pai ficou mudo. Não soube responder ou entender a piada do moleque.

O menino completa:

- Ele parece um cachorro com aquelas patinhas da frente (risos)

Mais perguntas:

- Pai, por que os dinossauros morreram? Eles eram tão grandes!.

Nenhuma resposta. O homem olhou pra o menino, mexeu em seu casaco, colocou a mão em seu queixo, como se quisesse dizer: ¨- Passo! Manda outra!¨

Estava ficando agoniado com as perguntas jogadas ao vento. O Google naquele momento estava fora do ar - a net estava lenta.

Mais outra, no mesmo assunto;

- Pai, se os animais pequenos conseguiram sobreviver, por que os dinossauros não? – o menino insistia. Ele queria que o seu herói respondesse ou, simplesmente confirmasse que a professora estava certa.

A cada pergunta do curioso, eu respondia silenciosamente. Sabia tudo sobre aquele assunto. Mas sabia também que não podia responder àquele exercício entre pai e filho.

O ônibus chegou e eles partiram.

Sorri. Era um sorriso de satisfação e de recordações. Não me lembro dos meus porquês. Sabia que não tinha ninguém que me responderia sobre céu e estrelas. Acho que eu não era um menino perguntador e sim um pequeno observador.

O meu filho nunca se interessou por dinossauros; nunca teve interesse pelo mundo animal ou vegetal e nem tampouco olhou para o céu. Ele é eletrônico. Enfeita-se de telas, joysticks, pendrives e botões com start, play e pause. E as nossas conversas de iguais, só acontecem após uma peça, um cinema ou um show.

E eu agora estou aprendendo sobre futebol.

Um dia desses, ele estava atrás de mim, lendo o que escrevia em meu laptop e disse:

- Sabe, tô até gostando de poesia!.

Olhei para trás e respondi:

- Que bom, bacana! Que bom... quer fazer uma comigo?

Ele respondeu:

- Ainda não, não estou preparado ainda.

Voltou para o puff e começou a apertar aquele objeto cheio de botões coloridos.

Apertei o meu play e viajei num texto.


Paulo Francisco

Descoberta


Estávamos numa conversa um tanto quanto, ou seja, numa conversa quase fiada. Era uma conversa melosa, como se tivéssemos os dedos lambuzados de mel. Quando por cargas d´água ela me saiu com essa: ¨Eu não! Eu, eu te aturo!¨ Fiquei tonto, enquanto ela , ria do outro lado. Eu sabia que aquela frase era também um chamego, era a confirmação que há estrelas no céu, sabia que foi um jeito de dizer: ¨Eu te amo apesar de tudo¨. Mas quando tentei entrar no jogo, veio mais uma porrada misturada a gargalhadas: ¨vou contar pra todo mundo a sua ranzinzice.¨ Nem argumentei, mudei de assunto e, depois de algum tempo de conversa cheia de dengos e desejos, nos despedimos.

Fui pra cama e lá comecei a pensar naquelas duas frases. Eu sou, realmente, muito difícil de ser aturado. Posso estar tranquilamente na categoria dos ranzinzas. Sim posso. Ela, mesmo brincando, se é que estava brincando – vai saber!- acertou na mosca – e por duas vezes.

Sim, ela me atura. Atura minhas manias; atura os meus caprichos; atura meu jeito de ficar isolado no escuro. Sou quase um ermitão. Sou um ranzinza.

Ela me atura. Atura este meu lado vacilão que a deixa preocupada por dias sem dá um telefonema para dizer que a dor já passou. Eu sou um insensível. Porque sou um ranzinza.

Ela me atura. Atura as minhas piadas sem graças que eu insisto em contar, como se fossem inéditas. E ela sorri. Porque se não sorri vai ficar ranzinza. E isto ela não quer.

Ela me atura. Atura a minha mania de dizer sempre adeus na hora que tudo esta ficando tão bom. Sou um chato, ou melhor, ranzinza nato.

Ela me atura. Atura as minhas indecisões, as minhas oscilações de humor – uma hora alegre demais, outra hora sério demais. Ranzinza? Acho que sim

Ela me atura.

Elas me aturam.

- Menino! Você reclama de tudo. Parece velho! Eu hein! Era a minha mãe me repreendendo das minhas ranzinzices – e eu só tinha dez anos de idade. Eu sou um ranzinza. Acho que nasci ranzinza, vou morrer ranzinza.

Que droga! É por isso que o meu filho faz caras e bocas na hora em que estou tentando mostrar alguma coisa que ele tenha feito de errado. Ele deve me achar o cara mais ranzinza do mundo.

Ontem eu fui à casa de minha amiga Valéria – era aniversário dela – e, ao voltarmos pra casa, meu afilhado Rogério me disse:

- Dindo, deixe de ser ranzinza, entre no carro e vamos embora!¨

Putz! Ferrou!



Paulo Francisco

Envolvimento




Minhas mãos estão geladas. Nada as fazem aquecer. Estou totalmente paralisado por um frio que não deveria existir. Nesta transição outono-inverno, escondo-me em casacos, toucas e cachecóis. Não gosto das luvas, perco a sensibilidade, sinto-me como se estivesse envolvido por uma espécie de barreira que não me permite sentir as coisas.

Minhas mãos são a extensão de meu coração. Faço delas o meu vocabulário. Com elas demonstro todo o tipo de sentimento. Quando com raiva, cerro-as de tal maneira que é possível ver, mais tarde, os sinais das unhas em suas palmas. Nervoso, não canso de esfregá-las. Cubro meu rosto quando não quero ver ou quando não quero ser visto.

Minhas mãos estão geladas e nada as aquecem. Elas estão geladas de frio e medo.

Talvez elas estejam assim pelo seu silêncio. Não sou bom com as palavras, sou melhor com as mãos. Com elas digo que amo; com elas demonstro desejo; Com elas imploro mais um pouco e com elas a impeço de fugir de mim.

As minhas mãos são parceiras e amigas. Elas disfarçam a minha timidez. Chegam à frente em um abraço ou em um beijo. Mapeiam e digitalizam as curvas de um corpo. Enxergam pelos eriçados e a quentura agradável de meus desejos. Elas me informam as condições de estradas sinuosas e sísmicas. Elas se entrelaçam formando um elo acolhedor, transfundindo assim os nossos calores.

Minhas mãos estão geladas. Talvez estejam assim, por não poderem estar próximas de ti; talvez estejam assim , por não poderem, por uma questão de latitude e longitude, dizer: ¨quero você agora!¨. E nesta distância transitória, são elas que me lembram a sua presença.

Minhas mãos são meus olhos e também a extensão de minha língua e de meu sexo.


Paulo Francisco

Voo enigmático


Quando escrevo pra você fico assim meio maluco. Não me sinto ridículo, mesmo quando fico do avesso.
Eu não sei qualificar os meus textos. Escrevo! Eu não fico pensando muito – busco da alma. Faço isto agora. Fiquei com uma vontade danada de escrever pra você, de dizer-te coisas, sim, coisas! Nada profundo, senti vontade de dizer besteiras em sua orelha, deixar-te arrepiada e com vontade de mim.
Esta capacidade humana de se transformar em segundos, sair de um plano ao outro com a velocidade da luz é fantástica. Basta um clic; basta um alô; basta uma imagem para sairmos do plano da realidade para o plano do desejo.
Adoro sonhar, principalmente quando estou acordado. Fica mais verdadeiro.
Não tem explicação esta leveza ancorada em meu cais. Se é telepatia ou magia, eu não sei. Só sei que é bom. Gosto de imaginar-me nos ares coloridos de um mundo em que há estrelas. E se eu não posso pegá-las com minhas mãos, sinto-as no céu de sua boca.


Paulo Francisco

Poção



Uso agulha e linha para consertar o que se estragou. Procuro em uma de minhas gavetas - que estão sempre abarrotadas, por mais que tente esvaziá-las - agulha e linha para remendar o que já foi perfeito.

Seria tão bom se pudéssemos consertar tudo com agulha e linha. Consertar um amor partido, um coração ferido, um engano, um arrependimento. Pronto! Um ponto aqui, um ponto ali e, em pouco tempo, a regeneração total. Pura mágica biológica.

Preciso com urgência de uma costureira, uma profissional de mão cheia, para cerzir alguns estragos existentes.em minhas roupas. Sempre furo ou rasgo as minhas camisas. Ando por ai um tanto quanto estabanado, não olho por onde ando e nem com quem. Quando vejo, lá se foi uma peça de meu vestuário.

Preciso com urgência de mãos habilidosas que conserte alguns estragos internos. Preciso de costura invisível nas bainhas caídas. Novos botões em meus abrigos.

Preciso com urgência de uma magia. Algo que me faça ser menos distraído; menos aluado – estou rasgando muitas roupas nestes meus caminhos. São subidas e descidas íngremes; terrenos pantanosos, estradas pedregosas. Florestas encantadas com duendes e bruxas.

Uso agulha e linha para consertar quase tudo. Mas este corte que aparentemente é superficial não consegue cicatrizar com minhas linhas e agulhas – foi feito por galhos enfeitiçados.

Preciso com urgência encontrar a dona deste encanto que deixou sua marca em minha pele.
Seria ela uma bruxa?

Acredito que sim. Pois, além da marca epidérmica, ela paralisou o meu coração vagabundo, hipnotizou minha alma.

Uso agulha e linha pra quase tudo, mas para este corte, só a dona do feitiço para curá-lo, somente ela.


Paulo Francisco

Somente em mim




Talvez eu fale o que já sabes. Talvez eu seja repetitivo. Talvez não valha à pena.  Mas como talvez é acaso, digo: te amo demais.
E na certeza dos meus talvezes, crio em mim a incerteza do óbvio: será que te digo?
Mas se não digo, fica a incerteza como certa. E como não há meio termo para o amor, eu faço do texto, um relato. A declaração da certeza que tenho de ti.


Paulo Francisco

Em mim







Onde você está? O meu imaginário é fértil. Tem cores e cheiros. Gosto de me imaginar menino, em colos adotados, em aconchegos que me fazem sonhar. No meu imaginário tem como pano de fundo, músicas francesas que sussurram em meu ouvido palavras gentis. Não sei viver sem ela.

Os meus sonhos sempre foram de arrepiar. Acordava, quando moleque, e ficava como um índio em sua tenda, exclamando: Bem que podia ser verdade! Bem que podia ter acontecido! Sonhava que voava; que era o melhor corredor – era mais veloz que uma piscada. Nos meus sonhos tudo se podia. Voltava pra tentar, inutilmente, o mesmo sonho.

Continuo a sonhar. Mas não voo mais; não corro mais; não acordo e não me sento como um índio de pernas cruzadas. Os meus sonhos são mais próximos de minha realidade. Não ligo muito pra eles. Acordo e percebo que todas as cores, que todos os cheiros não passaram de um devaneio. Viro pro outro lado e volto a dormir.

Agora, eu sonho acordado. Assim fazendo, tenho a sensação de ser possível. Imaginar-te em passeios à beira mar é possível. Imaginar-te em noites estreladas é possível. As minhas rimas são possíveis. Encontrar um cílio em sua face é possível. Sonho acordado. Flutuo em terra firme. Minha miragem, meu desejo.

Imaginei um amor. Ele não é irreal – é possível. Tem todos os meus desejos e prazeres. Desenhei um rosto, um olhar, uma boca e transmutei para o meu coração. O meu coração é possível. Ele tem espaço pro amor, pra sedução. Ele bate em ritmo de brisa. É leve e faceiro.

Desenhei em traços fortes e cores vivas um paraíso. Um lugar especial, sem anjos, sem jardins fantásticos, sem céus impossíveis. Nada de irreal. Desenhei, em cores brilhantes, somente nós dois. Isto é possível. A paisagem fica ao acaso. Pode ser aí ou aqui. Ou quem sabe lá, entre um e outro – no meio do caminho.

Agora, fico aqui a imaginar o momento possível de encontrar este traço imaginário.

Onde você está?





Paulo Francisco

Questão de preferência



Aqui só falta você. Procuro entre todas as flores, no vaso de vidro, no centro da mesa, uma que me chame a atenção. Não a encontro. O florista esqueceu-se de por junto ao ramalhete a linda flor.

Toda vez que vejo um vaso de flores, fico olhando pra encontrar entre todas a que me desperte mais a atenção. Sempre tem uma que nos atrai. Entre botões fechados e rosas abertas, uma é mais aveludada, tem maior brilho. As rosas ainda em fase de desabrochamento, ainda se encontram num tempo transitório, ou seja, o que será dela ao desabrochar por completo? Uma rosa perfeita, aveludada, ou uma rosa com sua cor empalidecida perante as outras? Só o tempo dirá! Prefiro as que já estão formadas, com suas pétalas perfeitas, viçosas. Gosto da rosa desabrochada e cheirosa. Tem que ter perfume; tem que ter brilho; tem que me despertar desejo.

Procuro sempre entre as cores a que me chame mais a atenção. Confesso que o azul é minha cor predileta. Mas não posso negar que ao ficar manchado pelo vermelho de uma boca, fascina-me.

Tenho amigos que odeiam mulheres com batom. Eu adoro. Gosto de ser pintado por ela. Gosto de mulheres enfeitadas; de unhas pintadas e que provoquem arrepios e contrações.

Não sou diferente deles. Eu, pelo menos, confesso. Não preciso de um botão de rosa na lapela. Quero uma rosa pronta em meu travesseiro.

Não sou diferente de ninguém. Gosto do azul, de uma boca vermelha, de rosa perfeita – quer dizer, já desabrochada.

Prefiro e, não é vantagem nenhuma, frutas maduras – são mais suculentas e sua doçura é mais envolvente à fruta verde no pé que demora muito pra amadurecer. Não tenho tempo nem paciência pra cuidar e esperar o seu amadurecimento. São lindas de se ver, mas são duras de morder. Prefiro uma fruta na mão a várias no cesto.

Não sei por que eu escrevi este texto. Talvez seja porque aqui só falte você.



Paulo Francisco

A curiosidade quase matou o gato



Comigo-ninguém-pode. Lembro-me como se fosse hoje. Numa tarde qualquer estava agarrado às barras da saia de minha mãe, sempre atento as suas conversas – adorava ouvir os adultos e, era sempre expulso por um deles com a seguinte frase: "Vai brincar menino, isto não é conversa de criança!" - Pois bem, estava grudado em minha mãe voltando pra casa depois de uma visita a uma amiga dela, quando outra amiga a encontra no meio do caminho e seguiram juntas a conversar. Um papo dali, outro papo daqui e, eu atento, não deixava escapar uma vírgula.

Quando passamos por um velho conhecido terreno baldio, ouvi de uma delas: ¨ Como pode, um terreno deste abandonado, sem uma cerca e cheio de mato.¨ a outra: ¨ um perigo! Olha! e está cheio de comigo-ninguém-pode, um veneno!

Fiquei com o nome da planta manchada em minha cabeça e com aquela palavra saltitando em minha mente: Veneno! Toda vez que passava próximo ao terreno ficava a namorar aquelas folhas largas e convidativas, até que uma tarde resolvo saber se era verdade que planta era venenosa e mastiguei-a com gosto. Pra encurtar esta história, foi o único dia que uma travessura minha não acabou em chineladas, mas em compensação me fizeram vomitar até as tripas. Fiquei mole por uns bons dias e ainda ouvi sermão de todo mundo. Senti saudades da chinelada Era mais rápido e curava logo.

Eu era assim, o revés da obediência. Ouvia que não podia e aí que eu queria. Tomava banho de chuva, fugia à noite pra brincar na rua, andava de trem até a quinta da boa vista, ia ao cinema depois da aula.

Hoje já cumpro mais com os meus deveres e obrigações. Mas a curiosidade em querer saber das coisas sempre foi o meu fraco. Por este complexo sentimento caí em algumas ciladas.

Hoje me comporto com cautela. Olho a folhagem pintada e no máximo mostro-me em desejo. Estou mais cuidadoso – gato escaldado. Descobri que o fogo aquece, mas também, pode queimar; a água sacia, mas pode afogar; nem todo vento é brisa.

Assim vou levando minha vida de curioso. Observo primeiro, estudo um pouco e depois sim ponho a mão. Nem tudo que está à vista é pra ser tocado. Nem tudo que vem ao vento é pra ser agarrado.

Aqui em casa, por exemplo, as miúdas e graciosas marias-sem-vergonha estão sempre florindo. São estudadas pela medicina. Enfeitam. Mas quem disse que não são tóxicas?






Paulo Francisco

Dependência




Não espere de mim mais do que eu tenho pra dar. Quando a professora, no final da aula, entregava o boletim, eu ficava tenso, angustiado, tornava-me pedra pra não revelar a minha aflição. Não queria um dez, não queria um nove, não queria nada além do possível, bastava-me um boletim azul, pra eu sair daquele transe mortificado. Vermelho respingado, azul manchado. Tinha, tínhamos, naquela época, vergonha de uma nota abaixo da média.

Na vida, tentei ter o meu boletim sempre com notas azuis, mas como a escola do mundo é pra sempre, é quase impossível não manchá-lo com alguns respingos vermelho e amarelo.

Como recebíamos o boletim fechado num envelope pardo, o suspense era maior, principalmente quando era entregue pelas mãos da Professora com um ar sério ou de reprovação. Um sorriso dela era o sinal de que não tínhamos ido mal.

Quando cheguei a minha casa e vi seu rosto fechado, seus olhos cabisbaixos, seu andar arrastado, percebi que estávamos abaixo da média.  Nossa relação estava no amarelo e há qualquer deslize chegaria ao vermelho. E chegou. Fui reprovado sem o direito de recuperação.

Não entendia a compreensão do amor. Era difícil pra mim, o doar, o aceitar, o resignar. Não entendia que tínhamos que caminhar numa via de mão dupla. Não decodificava; não abstraía. Tudo era erroneamente um todo. Não compreendia as etapas da vida, seguia numa linha reta, sem parada pra descanso, sem parada pra reabastecer a máquina, sem uma revisão de tempos em tempos. Não revisava a vida.

Ah, fui reprovado tantas vezes na disciplina do amor que quase desisti da matéria. Passei um bom tempo afastado da classe. Achava que não era possível acompanhar toda metodologia aplicada. Era complicado decorar todos aqueles termos, conceitos e definições no tempo exigido pelo sistema.

Mas como seguir sem a compreensão da base da vida? Como entendê-la se não vivê-la? E se vivê-la, como aceitá-la?

Tornei-me autodidata. Segui o caminho do construtivismo.

Sigo num aprendizado sem fim. Entre erros e acertos, defino-me, conceituo-me e não chego e nem devo concluir-me, pois a cada dia, há na vida, elementos novos, pra colocarmos a prova. Somos a nossa própria experiência.

Experimento-me.

Não exija de mim, o que eu não tenho para dar.

Se vermelho ou se azul, com ou sem segunda época, o boletim é da responsabilidade de cada um.




Paulo Francisco

Drama





Estou velho demais pra morrer de amor.  Mas caso eu venha morrer, por agora, que seja então de amor vivo. Que eu esteja recostado em seu ventre, sentindo a cadência de sua respiração, o calor de seu corpo, que as suas mãos estejam em minha nuca e seus lábios nos meus.

Não me conformava com o drama de alguns amigos quando a relação escorria pelo buraco negro da vida. Considerava tudo aquilo uma perda de tempo. O que adiantava o desespero da perda, a não ser pra perder totalmente a razão.  O amigo L entrava em desespero, quase enlouquecia por causa de um abandono.  Descobria tardiamente que aquela que o dispensara era a mulher de sua vida. Bebia e chorava o inevitável, chorava e bebia a triste descoberta, bebia, chorava e me alugava madrugada adentro com suas lamurias e desesperança.

Eu era tão bom ouvinte como um bom bebedor de cerveja.  Enquanto pra ele era desespero, pra mim era diversão.  Sabia que em menos de um mês o camarada me ligaria pra comemorarmos a sua nova paixão, a verdadeira mulher de sua vida surgira das cinzas de seu sofrimento. E saíamos pra comemorar o seu novo estado emocional.  Pelo menos ele não só dividia sua tristeza – as alegrias também eram comemoradas em copos gelados de cerveja.  Não sei como ele está agora. Perdemo-nos no meado dos anos oitenta.  Mas eu nunca esqueci suas esquisitices amorosas.  

Mas não era só ele que fazia drama por uma paixão mal acabada. Havia outros marmanjos com a mesma síndrome do abandono.  Eles me ensinaram a sofrer calado.

Eu também sabia sofrer de amor. Um bom abandono amoroso tem que ter sua dose de desespero, sua dose de sofrimento, sua dose de lágrimas e soluços. Um bom abandono amoroso tem que ter dia nublado, guarda-chuva preto e travesseiro.

Falava com o vento na esperança de obter respostas.  A saudade era tão imensa quanto o vazio no peito.  A dor da perda nunca foi branda – era dor de membro amputado. Tentava viver na normalidade, mas as noites se tornavam longas e os amanheceres frios. Era uma saudade doída, uma dor de alma, uma dor de nunca mais. Sentia-me abandonado pela sorte.  Um desafortunado temporário.

Achava que nunca iria esquecê-la. E como viver assim? Como viver sem a presença daquela que jamais pensei em perder? Não sabia.  E por não saber inventava-me; transformava a dor e sonhos em histórias terceirizadas.  Dramas grafitados em pedaços de papel ruim. A cada abandono, nascia uma tela abstrata e cinza. A cada abandono, uma morte esquisita. Eu também sabia ser dramático. Ouvia músicas tristes e bebia uísque.  Ah, eu também sabia morrer de amor.

Mas o tempo passa, ensina a virar a página.

Hoje, eu estou velho demais pra morrer de amor. Prefiro morrer de outra coisa e vivê-lo até o fim.


Paulo Francisco


Empatado







Não quero mais brincar. Estava sentado num banco do parquinho observando o nada. Estava ali para não fazer e nem pensar em coisa alguma. Descompromissado comigo mesmo, ali fiquei, olhando sem ver. Mas uma frase aguda me despertou daquele transe provocado: ¨- Não quero mais brincar! Não quero mais brincar!¨ Todos cercaram o menino que de braços cruzados insistia na frase. Ele estava irredutível, era árvore que não envergava, e seu comportamento, fez o grupo se espalhar – eram folhas soltas em redemoinho. E ele, ali, no centro, cabisbaixo de braços cruzados. O que estava fazendo? Pensei. A brincadeira vai acabar por causa dele? Me perguntei.

Mas na vida tudo se resolve. Os meninos voltaram para o menor e tentaram convencê-lo de que não deveria fazer aquilo, porque senão eles iriam brincar de outra coisa e ele não entraria. O menino resmungou algo e balançou a cabeça numa positiva, entregou a bola que estava sendo esmagada pelo seu pé esquerdo. Ele era o capitalista – dono do capital.

Quase que instantâneo todos gritaram de felicidade e correram para as extremidades daquele campo improvisado. Soltando palavras de ordens:

- Aí, ¨cavera¨! Fica na direita... Não! Não! Gigante ( o menor da turma)fica aqui mais próximo da área. Vamos lá! Tava quanto o jogo?

Alguém grita:

- Quatro a três!

A discussão agora começa por causa do placar:

- Não mesmo! Tava empatado quando o verruga parou o jogo. Ri com o apelido do moleque e pude perceber que seus dedos tinham umas três verrugas grandes.

- ¨Cavera¨! ¨cavera¨! O menino magro e comprido corre em direção de quem lhe chama, gritando: falai aí meleca! Cai na gargalhada: meleca!? Pensei.

Eram os apelidos dos mais engraçados que já ouvira: tatuí, barata (estes eu ri e muito, eram dois artrópodes das classes crustácea e insecta, respectivamente), caroço, e muitos outros,mas dos tantos apelidos o mais engraçado foi quando olhei para o moleque com o calção laranja e que correspondia ao singelo nome de guerra: ¨Cheroso¨. O suor escorria em bicas de sua cabeça, as placas grossas acinzentadas em seus cotovelos e joelhos indicavam banho uma vez por semana, não vou comentar das unhas - impraticáveis. Tive que rir.

Todos felizes jogando depois de chegarem a conclusão de que era um outro jogo. Começariam do zero a zero. Sai dali, rindo, com a democracia afetiva entre eles.

Pensei: Não quero mais brincar! Ou começamos do zero a zero ou não jogo mais.


Paulo Francisco

Disfarce





















E por de trás dos óculos escuros meus olhos sorriem. A minha timidez me confunde. Sim, sou tímido. Dizem que meus olhos falam por mim. Talvez, seja verdade. Falo com eles o que não tenho coragem de expressar com palavras.

Apelo para os meus braços e minhas pernas. Abraço apertado. Mãos que afagam. Olhos que dizem. Meu corpo trabalha em dobro quando o assunto é o amor. Não digo em palavras – sou tímido demais para expressar o que sinto. E nesta aventura me desnudo em poemas, suspiros e muito calor dermal.

Sou assim:

Uso óculos escuros para me esconder de mim.


Paulo Francisco

Dueto




Os raios invadem minha casa. Não sei acordar de outra maneira. Não vedo meus olhos pra dormir. Não fecho minhas cortinas. Gosto de ir dormir olhando pro céu. Cochicho com a lua em noites claras e sou acordado pelo sol. Penumbra só em momentos de puro tédio ou em uma grande enxaqueca.

O meu acordar é lento, minha alma me chama e acaricia-me em massagem chinesa. O meu espreguiçar é demorado, pernas e braços são movimentados num vocabulário próprio do balé. Dizem por aí que tudo isto é preguiça. Pode ser, mas só abro os olhos depois de meu concerto coreografado ser todo executado e o coral de anjos terminarem sua canção.

Não tenho pressa ao acorda. Sei que depois tudo vai ser diferente. Tempo pra tudo, horas pra tudo. Não, não me venha dizer que o meu despertar é de preguiçoso – ele é necessário.

Tenho algumas necessidades que vão à contramão do dia-a-dia. Necessito por exemplo de músicas, não músicas enfiadas nos ouvidos como vejo por aí. Necessito dela em minha casa, em meu trabalho, em meu viver. Os meus amigos são canções. Canções das mais variadas. Tenho do Rock ao Fado; do Forró a canções francesas. Os meus amigos são diversificados.

O gostoso é quando a discoteca está em minha sala. Concerto de primeira. Festival de repertório.

Engraçado, tem gente que mal conhecemos e já se torna música aos nossos ouvidos. Conheci por um tempo desses uma mulher que aparentemente me pareceu ser uma música francesa, mas depois, ela foi se mostrando que também podia ser uma bela canção de musica popular brasileira. Gostei dela.

Ela gosta de dormir na penumbra, mas deixa uma frestazinha na cortina para ser anunciada pelo dia que está na hora de acordar. Os raios invadem seu quarto de maneira sorrateira. Seu espreguiçar é menos coreografado, mas as suas poses são dignas de quadros sensuais.

E nestas noites, certamente, abandono a lua, esqueço o sol. E a penumbra é minha amiga.

Num duo, alguém tem que ser a primeira voz.



Paulo Francisco

Coração tranquilo

Resolvi voltar pra casa andando. Meus pés, minhas asas. Assim, teria mais tempo para admirar os fantasmas em galhos e sombras. Gosto de imaginar personagens e objetos possíveis em árvores e muros manchados. Divirto-me e esqueço-me do tempo, da lua e das estrelas. Neste meu momento, não existe céu e, sim, um quadro negro para o meu imaginário. Rabisco, com giz invisível, rostos, invento palavras e construo castelos. Sigo o mesmo ritual do menino franzino, que andava em ruas escuras segurando a barra da saia de sua mãe. Volto num tempo que a minha inocência era o meu pote de ouro.

Andava lentamente, sem pressa, saboreando cada passada. Não sentia o véu orvalhado, que dançava em minha frente. seguia o mais lento possível, não queria chegar logo, queria que o tempo demorasse a distância em que o meu coração se encontrava.

A calçada brilhava – ela estava serenada.

Não estava frio, mas também não estava quente. Estava na temperatura de meu corpo. Mesmo que o termômetro insistisse em anunciar seis graus.

Eu precisava pensar e, pra mim, nada melhor que andar na madrugada silenciosa e fria.

Gosto do silêncio noturno. Silêncio, somente quebrado pelo piar da coruja e o barulho do vento. Mas eles não eram intrusos e, sim, parte de meu templo chinês.

Seguia conversando comigo mesmo. Podia até falar alto que não tinha uma viva alma para me censurar. E os mortos, certamente confabulavam, em total silêncio, o meu pensar.

Às vezes me pego falando alto em pleno passeio público. Fico totalmente sem graça, quando percebo que uma ou outra pessoa possa ter ouvido os meus lamentos. O mais engraçado é que só penso alto quando estou agitado, quando uma decisão importante está por vir.

Quando triste, chateado, fico silencioso, carrancudo.

Em casa, eu canto, converso com as minhas cadelas, falo comigo mesmo. E daí? Não tem ninguém para me censurar ou me chamar de louco. E quando me encolho debaixo das cobertas, cultivando o meu silêncio, também não tem ninguém que me tire as cobertas e me deixe no frio.

Ultimamente, não estou sentindo frio e, alto, somente o som das músicas que tento acompanhar desafinadamente. Coitados dos meus vizinhos que têm de ouvir a minha preferência musical.

Mas neste exato momento, não estou triste e nem tenho que tomar nenhuma decisão importante. Simplesmente estou feliz

Paulo Francisco

Guiado por um céu azul






Ontem foi um dia especial, traduzo-o como o mais azul dos últimos dias. Estava aqui em minha rede, em pleno ócio, olhando lá pra fora e me perguntando o que estava fazendo em casa com um dia tão lindo. Mas têm dias que eu prefiro admirá-los de longe, de soslaio.  Mas o sol estava convidativo, a brisa chegava acariciando o meu corpo com mãos de seda. Não resisti e acabei saindo sem destino, como barco a vela guiado pelo vento. Bermuda, chapéu, mochila e vontade de caminhar por aí. Encontrei vários rostos conhecidos, várias imagens foram registradas pela lente de minha máquina.  Segui até o Parque Nacional – gosto de me sentar próximo a cachoeira e ficar ali lendo e observando os corajosos banhistas.
Ontem foi um dia especial. Sem destino, ao vento, guiado pelos raios solares pude me encontrar com a natureza que tanto prezo.  Depois de um bom descanso à sombra daquela árvore secular, segui o meu caminho, segui pro meu objetivo - ir ao topo de uma das trilhas existente e contemplar lá de cima minha cidade e registrar aquele céu azul.
Mas ele ficou mais azul quando de repente encontrei-a sozinha seguindo o mesmo caminho que o meu. Sorrimo-nos, abraçamo-nos, e caminhamos juntos o percurso seguinte. Descubro, então, que o céu azul e a brisa refrescante, convidavam-me pra um encontro inesperado. Desde a morte de Ana Beatriz que não via nenhuma de suas amigas.
Às vezes é bom relembrar, viver e contar e recontar o que foi bom.
Ontem foi um dia especial. - olhei para o céu e ele estava a sorrir.
Ontem foi um dia daqueles  que a gente não se esquece nunca mais.
Amanhã eu parto pro  mar. Vou ver outra Ana e outra Maria. Amanhã estarei com o meu primeiro amor, Maria minha mãe, tantas vezes registradas nos meus pequenos relatos; amanhã estarei juntinho de Ana, a caçula de minhas irmãs.
Ontem foi um dia especial, amanhã, certamente, será muito mais.

A lua só existe para os sonhadores?





A lua só existe para os sonhadores? Ficar ali, na rede, namorando a lua é típico de mim.  Gosto e não nego. Sou um sonhador nato. Sonho com a possibilidade de um amor que me faça astronauta, que me faça flutuar até a lua. Tenho certeza que em algum lugar tem alguém olhando pra lua de maneira sonhadora, querendo este mesmo flutuar. A lua tem essa magia de nos hipnotizar e transformar-nos em viajantes estelares.


Estava escrevendo este texto quando o telefone toca e era uma  ¨ex-namorada¨  em prantos me cobrando uma atitude com relação a um poema que fiz. Acusando-me de dissimulado, cafajeste, sacana e sei lá o quê. Oras, eu não postei nada que pudesse denegrir  sua imagem ou seus sentimentos.

Demorei pra entender que na verdade ela ainda tinha a esperança de uma volta. Ela tinha, eu não. E o que eu postei foi um poema com relação a duas fotos de flores que ganhei de uma amiga do nordeste de quem gosto muito.

Pois bem, era isso que eu queria falar e não estava conseguindo me expressar de maneira clara a respeito: namoro a lua, gosto de contar estrelas, faço poemas bobos, escrevo sobre o amor da maneira mais singela, quase adolescente e, mesmo assim, sou chamado de cafajeste. Será que sou? Agora já não sei mais se sou ou não. Talvez eu seja. Sou um cafajeste que canta ao amor, que manda flores, que faz textos apaixonados e diz que ama quando ama. Sou um cafajeste que aceita acusações indevidas simplesmente pra não magoar o seu par. Sou cafajeste por sair de cena quando percebo que a relação se desgastou. Sou cafajeste porque acredito numa amizade depois do término de um namoro e, não admito picuinhas, intrigas - já passei da idade pra aceitar tais comportamentos infantis.

Não quero mais um amor neurótico onde a insegurança transforma o certo em duvidoso. Não sei ficar me desculpando com relação ao que não fiz, simplesmente pra espalhar a nuvem negra que paira em nossas cabeças. Isto cansa.

Não, não sou dissimulado, jamais consegui dizer ou fazer o que não estava pensando. Às vezes me faço silêncio, porque acho que dentro desse meu silêncio eu posso vir a gritar as minhas neuras. Ninguém tem que aguentar as minhas inseguranças, não vou jogar naquela que me ama a lama fétida de meu passado inseguro. Também não aceito que façam comigo.

Sou um viajante estelar, quero um amor que flutue comigo e não um amor que põem bolas de ferros em meus pés e me algeme com argolas da desconfiança e que tape minha boca pra que  meus textos não grite ao amor. Sou livre, a arte é livre, o pensamento é livre.

Gosto de me embalar na rede, num vai e vem de sonhos. Então, não tente empurrar o meu corpo, porque ele não está morto. Também sinto dor.

A lua não só existe para os que sonham. Mas, para os que não sonham, a lua é simplesmente um satélite.



Paulo Francisco

Arranhões

Não me julgues. Quando estou monossilábico é certo estar em outra dimensão. Quando estou assim, o melhor é não insistir. Guarde suas perguntas para mais tarde, porque não terás, não mais que um sim, um não ou um ok. Neste momento sou viajante de mim mesmo.

Se estou com sono, durmo. Então não critique o meu sono vespertino. Deixe o meu corpo recarregar, espere ele ficar pronto e minha mente sã.

Sou falante de natureza. Falo mais que devia, mas tem horas que papagaio precisa dormir.

Não tenho o poder de adivinhar – gostaria e muito ter este dom - mas se não falo o que quer ouvir na hora exata, sou insensível. Será que sou tão frio, ou estou fora de alcance? Possivelmente, estou num orbitador entre a Terra e o espaço. Espere eu descer.

Tenho algumas marcas adquiridas. Sim, marcas adquiridas na infância. Era um moleque que não andava – corria. Era extremamente feliz com as minhas pernas agitadas. Quando não estava correndo, estava no mundo da lua. Sim, eu vivia os extremos, ou muito agitado ou muito aluado. Quando aluado, pensador – mirim, era batata, algo iria acontecer, e acontecia, caso não fosse resgatado pelas minhas pernas felizes.

Tenho marcas por todo o meu corpo. Cortes em minha pele feitos pelo mais diversos dos acontecimentos. Cabeça rachada não era novidade. Pele cortada não era novidade. Minha derme era tingida por mercúrio-cromo e adornada por gazes e esparadrapos.

Não julgue o que não pode compreender. Se não falei o que queria ouvir é porque estava correndo em pensamentos ou estava viajando em sonhos. Se não respondi o que queria ouvir, ou se não falei o que queria sentir, é porque minha sensibilidade estava adornada por gazes e esparadrapos.

Hoje não enfeito minha pele de azul de metileno e nem de vermelho – mercúrio-cromo. Metileno só o meu céu e, vermelho, somente o meu coração.

Não me julgue. Se não tenho os seus olhos como posso compreender o seu coração?



Paulo Francisco

Às nove







Hoje, eu saí de minha rotina matinal. Geralmente não acordo cedo. Ninguém liga para mim antes das onze horas. Por outro lado, se um amigo tem insônia, recorre a mim – sabe que estarei aceso, cheio de gás.

Acordar cedo é verdadeiramente a morte. Arrasto-me durante todo o dia. Fico absolutamente grogue. Não produzo. Então, eu sempre me pergunto: ¨ Por que cismam de fazer reuniões aos sábados às nove horas da manhã?¨ Às nove da manhã... estou sonhando.

Às nove da manhã... meu céu ainda tem estrelas.

Às nove da manhã... ainda estou despindo a lua.

Aprendi num curso de pós- graduação – Cronobiologia – que eu não era o vagabundo que todos diziam. Eu-era-nor-mal! Ouviu gente!? Nor-mal!!!!!! Dormir de madrugada e acordar ao meio dia não dá titulo de vagabundagem - A cronobiologia explica.

Senti-me em casa, estava junto com vários profissionais, gente bacana do tipo: enfermeiros, pilotos de avião, aeromoças, professores de várias áreas, botânicos, zoólogos, farmacêuticos e muito mais. Era a glória, estar com tantos colegas que possivelmente eram também chamados, no mínimo, de preguiçosos.

Mas o que mais me chamou a atenção foi a história de um camarada que dizia estar ali na esperança de salvar o seu casamento. Ele estava em busca de uma solução para tanta discórdia em sua casa. Ouvi o seu relato e entendi, naquele momento, como era importante a sintonia, até mesmo no fato de dormir e acordar ao mesmo tempo com o seu par. Ele relatou que a qualidade do sexo estava inferior, que depois de um certo tempo, perceberam juntos que nunca estavam os dois realizados. Quando um ainda tinha fogo o outro já não tinha mais madeira pra queimar. Perceberam que tinham que achar um meio termo e acabaram conseguindo, mas não era a mesma coisa, segundo o relato do camarada para mim.

Fiquei com aquela conversa na cabeça e comecei a imaginar por que algumas pessoas mantêm relações extraconjugais mesmo gostando de seus cônjuges. Será que a cronobiologia explicaria também isto?

Hoje, eu saí de minha rotina matinal. Acordei com o telefone tocando para lembrar que eu tinha uma reunião. O telefone tocou justamente quando estava despindo a lua.




Paulo Francisco