Presente

 

Abro as minhas mensagens no celular e leio:

- Paulo, gostou da surpresa?

Pergunta corajosa pra quem sabe que surpresa não é pra mim. Principalmente no dia do meu aniversário. Sei que é difícil pra muitos que eu queira estar sozinho nessa data. Posso até festejar depois, mas o dia é só meu. Não sei  ou não me lembro de já ter escrito sobre este assunto. Mas não importa. O que importa é ter quem queira transgredir essa regra.

Mensagem de parabéns pelo celular? Talvez retribua a mensagem com atraso – vai depender do meu humor. Não, atoa, que muitos me chamam de ranzinza, rabugento e outros adjetivos. Quer saber: ¨Tô nem aí! ¨

Antes que você tente me analisar por esse texto, já vou lhe dizendo: Não vem que não tem!

Antes que  me chame de esquisito, já vou lhe dizendo: Não vem que não tem!

Antes de achar que eu fico isolado, triste, com pena de mim, já vou lhe dizendo: Ledo engano, pessoa!

O aniversário é meu. Faço dele um dia especial pra mim. Às vezes, dependendo do dia, vou ao cinema, teatro; faço uma caminhada no parque, saio pra tomar cerveja, converso com estranhos, ou simplesmente tomo uma taça de vinho, assisto a um bom filme ou maratono uma série. Por favor, não me acorde com congratulações. Continue me acordando com beijos quentinhos.

Mas por que estou escrevendo sobre isso? É que esse ano aconteceu uma coisa que não estava nos meus planos. Volto a pergunta do começo do texto. Quando recebi por mensagem a pergunta, quase fui mal-educado na resposta. Respirei, respirei profundamente antes de responder – técnica boa para não ter arrependimento depois.

A priori não gostei da transgressão, mas levei na flauta como um bom brasileiro. Depois de tanto tempo de insistência de muitos para comemorar a data de meu aniversário,  acabei entendendo que pra eles aniversário é festa, pra mim, reflexão.

Pois bem, uma amiga de muitos anos acabou se hospedando num hotel na minha cidade para fazer-me a tal surpresa. Ela sabia do risco que corria. E por pouco não conseguiu encontrar-me, porque estava temporariamente incomunicável – celular desligado. No entanto, como precisava confirmar um compromisso, acabei ligando o aparelho para ver se tinha mensagem. Daí a surpresa. Ela estava na cidade. Acabei indo ao seu encontro.

Agora, vou aproveitar esse momento para respondê-la com o coração aberto e no pé de sua orelha: Surpresas me incomodam, mas você não. Gosto de ficar sozinho, mas pra você sempre abrirei uma exceção.

Talvez, surpresa seria se eu não fosse ao seu encontro – sou óbvio demais.

Agora quem faz a pergunta sou eu:

- Gostou da surpresa?

 


Distração

 


Coisa boa está na varanda, deitado na rede, colocando a leitura em dia com músicas boas de fundo. Dane-se as louças na pia – mais tarde, certamente, serão limpas. Hoje, independentemente que dia seja, ele será o meu domingo: dia de procrastinar, deixar o compromisso pra outro momento.  Por ora estar com os autores preferidos, cantoras queridas e minha escrita esquisita é o que importa. Olhar o céu quase transparente; vagar em pensamentos até o cochilo ser interrompido pelas maritacas cantando; não ter hora pra nada é o que importa.

Hoje é dia de transgredir. Taça de vinho, comida por entrega e celular desligado. Pois a manhã será um novo dia – dia de labuta. A realidade sempre vem pra nos acordar.

Quando dei por mim, o azul, aos poucos fora se desfazendo, transformando-se em cinza que por sua vez dera lugar ao preto. A paisagem colorida sumira na mesma ordem. Lá estava o dia, lá estava a paisagem, escondidas pela noite sem estrelas. Torno-me, temporariamente cego, absorto em meus pensamentos tolos.

Acaso

 Do nada, ela vem com essa pergunta:

- Paulo, porque você nunca sorri nas fotos?

Respondi à pergunta citando Cecília:

- ¨Longe, num barco,

deixei meus olhos alegres,

trouxe meu sorriso amargo. ¨

Aí sim, sorri. Sorri não pela minha resposta, mas pela cara engraçada que ela fez. Dei um pulo da cama e fui até a estante, peguei o livro de Fernando Pessoa e recitei Sorriso audível das folhas:

¨Sorriso audível das folhas,

Não és mais que a brisa ali.

Se eu te olho e tu me olhas,

Quem primeiro é que sorri?

O primeiro a sorrir ri.

Ri, e olha de repente,

Para fins de não olhar,

Para onde nas folhas sente

O som do vento passar.

Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando

Onde não olha, voltou;

E estamos os dois falando

O que se não conversou.

Isto acaba ou começou? ¨

Ao término da declamação, o quarto transbordou-se de gargalhadas. Rimos numa inocência juvenil. Como é bom quando um sorriso chega inesperadamente. Ele sempre alivia, enaltece e fortifica a alma.

Claro que sorrio. Talvez, menos que outrora, mas ainda sorrio. Às vezes, o meu sorriso fica retido, represado no peito e vaza pelos meus olhos miúdos. Ontem mesmo aconteceu esse sorriso silencioso que me fortalece: estava indo pra casa e surpreso, vejo sentado em um banco do ponto de ônibus, entre duas senhoras, Manoel, marido de minha amiga Valéria. Continuei a viagem com sorrisos nos olhos.

Coisa estranha

 













Estávamos tontos, cambaleantes, caminhávamos tateando as paredes que de vez em quando sumiam dando lugar a aberturas que nos obrigavam a caminhar de quatro para não sermos engolidos pelo desconhecido. De repente rastejávamos como serpentes num chão úmido e gelado. Eu sussurrava para que ninguém mais pudesse ouvir. Perguntava, implorava, mas nem um som de volta a não ser o do meu medo ecoando pelo vazio.

Queria gritar, pedir por socorro... mas...a quem? Onde estávamos, como fomos parar ali? Sentia que tinha mais alguém naquele ambiente sinistro e aterrorizador. Era um predador, um caçador a nos observar? Fechei os olhos e tudo parou. Silêncio absoluto. Não sei por quanto tempo fiquei naquela posição de feto. Ao abrir os olhos, descobri que já era dia e que estava nu, cheirando estranho no meio da minha sala.

- E quem estava com você?

- Ninguém... talvez o meu outro que aparece de vez em quando.

- Cara! Que domingo estranho.

- Nada errado com um domingo nublado quando o que se deseja é o anonimato. 

- Verdade!

De bar em bar

 




Para os amigos Cervejófilos

 

 

- Nem vem que não tem, bacana! Ainda continuo por aqui. Foi a resposta que dei ao Russo quando, ironicamente, perguntou-me aos berros do outro lado da calçada se estava vivo. O sumiço pandêmico criou essa expectativa. Se bem que, de vez em quando, sumo por um tempo. Sumo mesmo.

- Quanto tempo eu não te vejo... Muito tempo mesmo! Ontem, fui ao Bar do Serginho – bateu fome de sardinha e sede de cerveja. Lá encontrei, entre vários conhecidos, o Caio e o Paulo, que já estavam na saideira. Com o Caio já tinha esbarrado várias vezes no bar, mas o Paulo não. Não porque eu tenha sumido de verdade. O meu sumiço com relação ao Paulo foi temporal, ou seja, os nossos horários não batiam. Depois de ouvir a frase, respondi que não estava saindo à noite.

- Cara, você sumiu! Levei um susto com a frase chegando ao pé da minha orelha. Era o Denílson, colega de bar e ex-colega de trabalho. Ri, retruquei dizendo que ambos sumiram e marcamos uma gelada no Bar do Serginho, pra colocar o papo em dia.

Um dia desses, estava no bar da Jaqueline e ouvi uma voz na calçada, dizendo que eu não a estava reconhecendo. Cerrei os olhos, mirei na pessoa e a surpresa veio. Era a minha amiga Lúcia, com seus dois filhos indo pra casa depois de uma sessão de cinema. O encontro foi uma farra, abraços e beijos e muitos, muitos sorrisos. Coisa boa reencontrar pessoas que a gente ama de verdade.

Peguei uma carona com a Fivian, colega do trabalho. Ela me deixou num lugar diferente do meu itinerário habitual. No meio do caminho, parei num bar para pegar uma água e quando entro no estabelecimento, ouço a frase em coro: "Professor, quanto tempo!" Muitos me chamam assim. Eram Severina dona do bar e seus filhos. Nem sabia que eles estavam estabelecidos naquele bairro. Esqueci da água e matei a sede com uma cerveja estupidamente gelada.

Sabe o camarada do começo desse texto? O Russo. Pois é, acabou de me ligar, querendo saber como estou. Expliquei que a alergia atacou e que o joelho não está nada legal. A cadeira quebrou comigo e ferrei com o joelho. Coisas da vida! Adivinha onde ele estava? No bar da Jaqueline.

Antes que você venha me dizer que ando de bar em bar, respondo-lhe antecipadamente:

-  Nem vem que não tem, bacana! Ainda continuo por aqui. Com sede de cerveja e fome de sardinha.

 

 

 

Do the right thing.

 



                                                                                                                                                     Para o amigo Tuninho

Pôr a mão na massa.  Bastava um pouco de barro pra farra começar. Transformávamos em oleiros mirins, criando bonecos, animais e vários objetos por pura diversão. Gostava de esmagar com as mãos aquela massa escorregadia e brilhosa. O auge da diversão era a guerra de lama no final. Tudo destruído por uma causa maior – a alegria.

Colocar a mão na massa. Não me lembro de quem me ensinou a fazer massa de pizza, talvez tenha sido a minha mãe ou aprendi sozinho apenas observando alguém aprontando-a numa cozinha qualquer.

Como gostava de chamar os amigos para comermos uma pizza de muçarela feito por mim. Naquela época não tínhamos os fast foods. E a massa era valorizada, nada dessa coisa fina de hoje. Outras massas tornaram-se famosas na minha cozinha. Os elogios sempre vinham dos amigos.

Valorizo quem põe a mão na massa. Invejo os que têm o dom de manusear uma massa corrida por exemplo. Um dia desses resolvi reformar a minha despensa. Achei que jogar uma massa na parede e alisar com uma desempenadeira era tranquilo. Sempre observei os serventes de obra fazendo tal tarefa e não via nenhum bicho de sete cabeças. E como está na moda o tal de ¨faça você mesmo¨. Achei que poderia executá-la sozinho. Fiz uma pequena pesquisa, anotei todo o material necessário para a reforma personalizada e fui, todo orgulhoso, às compras.

Confesso que a empolgação era maior que a certeza de ser ou não capaz de executar o tal DIY, ou seja, faça você mesmo. Pensei: se não tentar com como saber.  Então mãos à obra, melhor, mão na massa.

Sabe aquela frase que quando dizemos sempre tem alguém pra retrucar? Pois bem, como estava sozinho pude dizer aos berros que nunca mais! nunca mais me meto a besta a tal tarefa. Com a mão literalmente cheia de massa, saquei o celular do bolso da bermuda e liguei para um amigo pedindo um "help". 

Não vou aqui detalhar o meu fracasso. A minha massa é outra. Quer saber: Cada macaco no seu galho! E o meu galho está por aqui.

 


Mudança

 


 Para minha irmã Claudia Lemos

Quando ela foi embora, deixou-me um vazio no peito. A dualidade brotou na minha carne. Gargalhei de alegria quando ouvi sua mensagem que estava partindo, indo em busca de mais um sonho. Sempre torci pra que isso acontecesse, porque também é um desejo meu. Mas ao mesmo tempo, o danado do egoísmo berrou aos prantos: Como assim?! Ficarei aqui sozinho, fincado nessa areia movediça?!

Chorei! Chorei de tristeza, chorei de alegria, chorei de desespero, chorei por pensar que não a terei perto de mim nos momentos de confidências, nos dias nublados em que precisávamos um do outro para assoprar pra longe as nuvens pesadas e cinzas. Éramos timões um do outro em mares revoltos. Ainda não me acostumei totalmente com a distância existente; com essa mudança newtoniana. Tudo é uma questão de tempo – eu sei! Daqui a pouco tudo se assentará.

Minha amiga foi embora, foi viver em sua pasárgada e ser amiga da rainha.

Minha amiga foi embora, foi admirar outras paisagens. trocou o verde das montanhas pelo azul marinho. Foi contar suas histórias pra mãe-d´água, sentada na areia, entre a lagoa e o mar.

Minha amiga foi embora, deixou-me um vazio no peito, mas sei que vou melhorar.

E quando ela estiver vendo o sol cair no oceano, estarei aqui, no meu egoísmo, apreciando o nascer do luar.

 



Sob a lua

 




Para Waldir e Verônica

Lá estava ela numa belezura só. A noite estava sossegada, quando ouvi uns murmurinhos vindos do quintal da casa ao lado. Saí para saber o que estava acontecendo, deparei-me com os meus vizinhos admirando o luar. Gostam de noite de lua. Eu também.

Brotando atrás da montanha, a lua parecia um cartão-postal; um convite para observá-la. Uma tela a ser admirada com paixão. Impossível não respirar profundamente com tamanha beleza.

Foi numa noite enluarada que a vi pela primeira vez. O vazio do peito, deu lugar a esperança e sonhos. Ficamos juntos por algumas luas. Sem regras, sem promessas, simplesmente ficamos sob o efeito lunar. Dizem por aí que as mulheres se tornam mais bonitas, mais atraentes, mais viris em dias de lua cheia. Será?  Hoje, somos amigos. De quando em vez nos falamos. Raramente nos vemos. Mas quando nos encontramos, independente da lua, ela está sempre linda.

Por causa da lua, por causa da minha curiosidade em relação às vozes dos meus vizinhos, lembrei-me dela o tempo todo. Gosto desse frenesi que ela me provoca. Gosto de como a lua mexe comigo. Afinal, somos setenta porcento água, não é mesmo?!

Coincidência ou não, eu a vi sentada numa das cafeterias da cidade. Por alguns segundos, olhei-a pela vidraça da loja. Não estava sozinha. Continuei o meu caminho lembrando-me da lua cheia; continuei no meu caminho com sorrisos nos olhos. Lá estava ela numa belezura só.


Sinais

 

Quando me via sozinho, era um desespero sem fim. O coração acelerava, a boca ficava sedenta e os fantasmas apareciam. Mesmo sabendo que era uma solidão temporária, não admitia, de jeito nenhum, aquele abandono. Então o choro vinha acompanhado de soluços nervosos, ora contínuos, ora intermitentes. Chorava até cansar. Adormecia numa piscina de emoções.

Os abandonos foram tantos que passei a chorar menos, a soluçar menos e a admitir a condição de criança abandonada, embora soubesse que ficar em casa era a melhor opção. Dramático?! Talvez! Mas foi a partir dessa prática que não ouvi mais a frase que homem não chora - criei uma carcaça protetora. Daí passei a chorar por dentro, a soluçar por dentro e os fantasmas apareciam com menos frequência.  Acreditei que estava recuperado daquilo que todos discriminavam. Que esconder as lágrimas fazia-me mais forte, mais homem – mesmo sendo um menino. Confesso que demorei pra entender que podia chorar, que podia soluçar. Que ser homem é demonstrar sentimentos de verdade. Que faz parte da condição humana.

A dor foi grande quando o amor partiu. Não só chorei como urrei feito um lobo solitário no alto de uma montanha numa noite fria de lua cheia. Chorei por horas, por dias, por meses, chorei alagando o mundo. Chorei querendo colo.

Dor de amor corrói o brio. Difícil de curar. E quando a dor dá lugar a solidão, torna-se nítido a sofrença guardada. Hoje, depois de muito tempo, tornei-me professor de mim mesmo.

- Não adianta, todo amor curado deixa cicatriz.

 

Momento

 


As minhas viagens são outras. Irene adora viajar. Recebi uma mensagem dela, pedindo para confirmar o meu endereço. Poucos dias depois, estava recebendo de presente dois cachecóis e uma boina de Lima. De quando em vez, ela lembra de mim e presenteia-me com algo legal. Os meus incensários vieram de Minas, alguns chapéus foram presentes dela quando foi à Europa.  Irene está sempre por aqui. As minhas refeições são coloridas quando uso meu jogo americano feito de sisal tingido vindo do Nordeste. Mas o presente maior é a nossa amizade. Impossível não rir com ela. Até os seus dramas são engraçados. Gosto muito de conversar com ela, não há tema proibido. Somos francos, cúmplices. Ultimamente estamos nos falando pouco. Aliás, ando falando pouco com todos. Ainda não me recuperei totalmente da pandemia. Sorte que os amigos me conhecem e respeitam o meu isolamento.  Todos sabem que seis pessoas reunidas pra mim é multidão.

Ontem, recusei um convite de Valéria. A Claudia já não convida mais. Mas elas sabem que gosto mesmo é de uma boa conversa olho no olho; tête-à-tête.

Num ambiente com muitas pessoas, procuro um nicho, deixo de participar e passo a observar. Viajo quando isso acontece. Às vezes, pegam-me fazendo caras e bocas. A viagem é tão grande que só o meu ectoplasma permanece no recinto. Já estou longe com os meus pensamentos fantasiosos. Fazer o quê? Gosto muito dessas minhas viagens. Como diz na letra da música dos titãs:

¨Não é pior do que parece ser

Foda-se! ¨

Como disse antes, as minhas viagens são outras. Vou aproveitar e acender um incenso, que a Claudia me deu, enquanto leio alguns textos de Valeria.

Contraste.

  

A casa era antiga, branca, com portas e janelas encardidas. As maçanetas de porcelana com desenho floral eram beleza à parte, mesmo com o amarelado do tempo e de pouco cuidado por aqueles que ali habitavam. Tudo era antigo. O ranger das tábuas do assoalho, a falta de lubrificante nas dobradiças das portas, os rachados nas paredes e os vidros trincados dos vitrôs, que certamente já foram mais coloridos, compunham juntamente com a dona da casa, um cenário de terror e encanto.

Não sei se a casa ainda existe ou sequer se ela existiu um dia. O que sei é que ela está viva na minha memória que aos poucos começa a fragmentar-se. Não sei se é uma casa inteira, ou pedaços de muitas outras.

A velha gorda, enrugada e quase inválida, possivelmente é uma personagem inventada. Um desejo silencioso, praga rogada por muito tempo àquela que um dia me fez sofrer.

O mais estranho, ou engraçado – não sei- é que o quintal estava sempre cuidado, as árvores arbustivas estavam impecavelmente podadas, as flores sempre vivas e coloridas, os bancos de ferro pintados de branco, o caminho sinuoso de granito cinza e seixos cristalizados pareciam novos, como não se pertencessem àquele lugar. Era o oposto da casa maltratada, da velha gorda e enrugada, sentada na cadeira de balanço, mirando pela janela todo aquele frescor.

Havia luz, brilho solar, vento acariciando as folhas das árvores. No quintal, havia esperança – o inverso encontrado no interior da casa antiga.

 

Noturno

 


Noite calma, alma sossegada. A noite veio em brisa, em vento miúdo, em céu adornado de estrelas; ela veio acompanhada de seu silêncio, que de quando em vez, era cortado pelos pios curto e longo da dona coruja – a noite veio para acalentar o corpo e a alma.

A noite não era de Pessoa ou de Cecília, tampouco de Vinicius. A noite era minha, só minha. Cúmplices, tínhamos segredos, desejos mundanos e divinos. Ela veio em calmaria. Acariciando a nuca e soprando a derme nua. Ela veio vestida de seda. Enfeitada com seu colar de estrelas.

A noite veio calma para sossegar a alma. Ela veio para guiar-me até à luz do dia.

Egoísmo

 

Hoje bateu uma carência daquelas. Corpo colado na cama, olhos querendo fechar num sono sem fim. Desejei um abraço apertado e demorado, um cheiro no pescoço e na orelha, um colo quente e macio.

Hoje, desejei tanto, mas tanto, ter alguém perto de mim. Alguém que coçasse a minha cabeça; que olhasse para mim e adivinhasse os meus pensamentos; que não criticasse a minha preguiça e muito menos o meu silêncio.

Hoje, acordei em sintonia com o tempo: cinza, chuvoso e preguiçoso. Acordei querendo colo, querendo você.

Hoje, acordei assim: um tanto quanto egoísta.

Outono


 


O sol nasceu morno. É sempre assim no outono. Ele vai aquecendo aos poucos até o meio do dia, quando a pele sente a ardência de seu poder. Apesar de todos os meus pesares, o outono é a estação que mais curto. Gosto de sentir a refrescância motivada pelo vento gelado em minha cara; da surpresa da noite estrelada; da lua espelhada nas vidraças; da manta cobrindo o meu colo e de uma fumegante caneca com chocolate em noites mais frias. Gosto da incerteza e das surpresas da estação - na mochila, sempre há um abrigo. 

Ontem, finalizei o dia admirando, da minha varanda, a lua crescente entre nuvens, parecendo brincar de se esconder de mim. 

Quando moleque, em noites frias uma pequena fogueira era providenciada em frente à casa de um de nós, para ficarmos sentados ao seu redor num bate papo sem fim - podíamos ficar a céu aberto enfeitado por estrelas, sem medo. Aliás, o medo só acontecia quando um adulto aparecia e contava alguma história de bruxas, fantasmas e correntes. Eram inevitáveis os olhos arregalados, a respiração silenciosa e o coração acelerado. Alívio, somente quando o grito materno chegava aos nossos ouvidos pedindo para entrarmos. Bendito o cobertor que servia não somente para nos aquecer, mas para nos proteger das personagens da história ouvida. 

Hoje, o sol demorou para aparecer. Culpa de uma cerração baixa. Lembrei-me da máxima:  névoa baixa, sol que racha. Dito e certo. O sol chegou, chegando. Percebi, caminhando nas calçadas do centro, homens e mulheres com casacos pendurados nos braços. Tem gente que não aprende, ou nunca ouviu o dito popular. Mas quando a noite invadiu o dia, a lua surgiu, a temperatura caiu, o vento veio manso e como ainda estava na rua, tirei meu abrigo da mochila, entrei numa cantina, pedi um caldo e uma caneca de vinho. Quando dei por mim, estava sentado ao redor de uma mesa, numa conversa sem fim, com pessoas que nunca vi. 

Agora, sentado em minha varanda, termino esse texto, namorando a lua.

 

 


Reflexo

 

No fundo do aço, a carranca se desfazia. Não adianta. Ficar puto por muito tempo só vai trazer mal estar, dores no corpo, cara feia e certamente alguém que não tem nada a ver com o meu mau humor vai ser atingido. Se não estou satisfeito, fico calado, fico em casa, fico na minha. Então, não venha tentar me distrair, porque não vai adiantar. Sabe aquela placa de mantenha distância, animal feroz! Pois é, acendo o letreiro e fico em meu canto. Gosto do meu silêncio, do anil tingindo o céu, do tentar colorir as lembranças quase apagadas. O dia passa, a noite vem, e é na madrugada que tudo acontece. O vazio, a calmaria e a certeza de um outro dia acabam restabelecendo o meu humor. O estado de ¨putez¨ vai embora, some quando a noite pari o dia. 

Ontem foi um dia assim. A carranca colou na minha cara e, possivelmente, assustou muita gente. Não consigo disfarçar por muito tempo quando estou chateado ou decepcionado com algo ou com alguém. E para piorar, o dia estava leitoso e frio e o horizonte estava opaco, impedindo a fantasia de um tempo bom. Nada de música, nada de filme, nada de nada. Simplesmente meu quarto, minha penumbra, minha respiração. Em pouco tempo, o corpo sossega, a mente adormece e tudo fica para trás. 

Hoje, quando acordei, o dia ainda estava cinza. O celular tocou. Era valeria mandando-me uma poesia. É sempre assim. O seu texto sempre me deixa feliz. Repeti, por várias vezes, a última frase de sua poesia: ¨Pessoas são palavras ecoando o divino. ¨ 

Quando dei por mim, voltei a aparecer no fundo do aço.

Sobre amigos

 


A escuridão desintegrou-se com o brilho de sua chegada. Era sempre assim. Bastava aparecer com seu sorriso grande, com a sua fala mansa, com seus olhos de gata que o cansaço sumia e a alegria tomava conta. Tem gente que irradia felicidade. Poderia citar algumas pessoas com essa qualidade rara. Como não quero ser injusto com aquelas-que também amo- mas que não se enquadram nessa categoria humana tão fantástica, não darei nome a nenhuma delas.

A liberdade que tínhamos um com o outro era tanta que nos restava rir, gargalhar até mesmo nos nossos fracassos. Com ela, o lema era levantar a poeira e dá a volta por cima, como já dizia a música de Vanzolini. Mulher retada, que vai em frente, segue seus objetivos até alcançá-los. Já está se preparando para ir a Brasília no segundo semestre. Conversando sobre a situação atual que nos encontramos ela me sai com a seguinte frase: ¨Vamos pra posse?! ¨ Cai na gargalhada.

Tem gente que sabe nos fazer bem. Toda vez que passo por ela, os nossos sorrisos se chocam. Incrível a sua capacidade de me fazer sorrir, até mesmo nos meus piores momentos. O mais engraçado que não tinha percebido essa condição emocional, até que depois de muito tempo, mas muito tempo mesmo, ela me parou e disse já sorrindo: ¨- Paulo, porque você está sempre sorrindo? ¨ Respondi com mais sorriso e disse que sempre que a via, voltava no tempo da escola que erámos só felicidade. Caíamos na gargalhada.

Tem gente que faz os meus olhos brilharem. É certeza de leveza, de tranquilidade, de vontade de ficar junto; que o papo vai ser bom, e que a despedida vai ser adiada até o último segundo.

Sabe aquela pessoa que não precisa estar o tempo todo com você, mas quando está perto parece que nunca se distanciou. Pois é, somos assim. Chamo isso de amizade e respeito. É certo de abraços apertados, beijos demorados e sorriso de querer bem. Amizade fraterna, amizade que torce, amizade pra todo o sempre. Independentemente de estar juntos ou não.

Ontem, a escuridão desintegrou-se com a sua chegada. Sabe, tenho que deixar de ser reclamão. Tem gente muito boa ao meu redor.

- Não é mesmo!?

 

 

 

Equilíbrio

 


Ao contrário de outros finais de tarde, a chuva chegara delicada, trazendo consigo um ventinho gelado de deixar arrepiados os nossos corpos quentes – certeza de uma noite calma e sem insônia. Quem me dera essa calmaria fosse diária. Noite de lua; de pensamentos longínquos, e de música suave no ar – coisa minha.

Às vezes, só às vezes, fico na inércia – o mundo pode vir abaixo que não estou nem aí. Aprendi a duras penas que a melhor resposta para determinada situação é o silêncio. É fazer ouvidos moucos. O mundo está muito doido para dar crédito as insanidades individuais. Tenho o cantar dos pássaros, as algazarras das maritacas, o uivo do vento, as madrugadas raiadas pela luz da lua e perfumadas pela dama da noite e, tenho também, a minha própria insanidade. Então, deixo a demência alheia para quem a aprecia – não faço questão nem quero participar de outros manicômios. O meu nicho está em outro habitat.  Não venha provocar-me com vara curta, a velha onça, ultimamente, está tranquila, mansa e de barriga cheia.

Ela, aparentemente afoita, manda-me uma mensagem de voz questionando a minha ausência. Ela, ainda não entende que o meu tempo não é definido por ponteiros, horas marcadas, e muito menos por juras e promessas. Não há juras, não há promessas, há verdade, sinceridade, confiança mútua. Então respondi, no meu tempo, que estava no meu canto, sozinho, contemplando o horizonte. Acho que não entendeu. Mas quem entenderia? A loucura é personalizada. Basta observar os psiquiatras.

Às vezes, só às vezes, abro algumas exceções. Tento enfrentar as minhas fobias - que são muitas. Valéria, minha preta do coração, mandou-me um recado dizendo que estava com saudade. Não respondi. Não precisava. Ela sabe que é minha irmã de alma, e que a saudade é recíproca. Mas por enquanto, vou ficando por aqui falando com os marcianos.

Ao contrário de outros dias, preparo uma caneca de chá de hortelã – dica da Carol e sachê doado pela Claudia – na esperança de uma homeostasia do corpo e da alma.  Sim, às vezes, só às vezes, fico livre da cafeína, do tanino e da cevada. Gosto de quebrar a rotina com o inusitado. Hoje, dormirei embalado pela rede – presente vindo do nordeste.

  

Pedaço

 



Sussurrar era necessário. Vivia, pelos cantos, murmurando em segredos. Hábito adquirido pelo medo de não poder se expressar em verdades. Época em que o sim e o não eram suficientes como respostas. Opinar era impossível; debater nem pensar. A ignorância obrigava-o a correr pelas ruas do bairro em gritos e tagarelices. Palavras e frases soltas para muitos, mas de extrema importância para o moleque que adorava viver.

O silêncio era escudo. Proteção que muitas das vezes era rasgado por gritos agudos causados por espancamentos desmedidos de quem deveria proteger.  Bastava um olhar mal interpretado para o corpo franzino receber fios de ferro – de- passar roupa, cinto com a fivela para machucar, tamanco português, ou qualquer outro objeto que pudesse marcar a carne de quem nascera para ser amado e não para ser açoitado. As nádegas eram bolsas de sangue pisado; as coxas eram tatuadas pela fivela que fazia urinar de tanta dor. As costas eram lanhadas em feridas vivas. Água com sal na bacia de alumínio era o unguento para aliviar a dor; mas de quem?

O abandono foi um presente.

A pré-adolescência chegara com o álcool e o fumo.  De casa em casa, buscava incessantemente por carinho. Abria os braços quando o sorriso era sincero. Sorria, quando o aconchego era quente e seguro, sem se importar de quem. A carência era tanta que qualquer palavra de bondade era agradecida com um olhar brilhante e sem medo.

As cicatrizes eram profundas, de quando em vez, jorrava o sangue guardado.  A solidão não o abandonara. O ardido da pele jamais passara, por mais que a brandura do relento o cobrisse por inteiro.

Aprendeu disfarçar a tristeza; a esconder as marcas; a enganar outros olhos. Aprendeu a sorrir. Tornou-se adulto - mesmo faltando-lhe um pedaço - sobreviveu.

Desábito

 

Há algo de estranho no ar. Sabe aqueles dias em que você não se reconhece? Que o clima está doido e você o acompanha sem reclamar? Pois é... uma garrafa de vinho, uma comédia romântica sobre o natal, uma manta cobrindo o corpo e o sereno lá fora, em pleno final de novembro.

Há algo de estranho no ar. Celular desligado para ninguém atrapalhar o silêncio instaurado no quarto. Nenhuma conversa fiada para desconcentrar, nenhuma notícia na televisão, nenhum corpo para cutucar. Somente eu e a minha solidão.  Nela, cavalgo a galope na esperança de encontrar, no meio do caminho, a luz dourada que me tire dessa fria escuridão, que me traga a ardência solar e claridade para me despertar.

Há algo de estranho no ar. Há sim. Ah, sim!

 

Acordo

 


Em dias cinzas, o melhor é ficar em casa. Era sempre assim. A liberdade era ceifada com uma única frase. Quer coisa pior que não poder correr pelas ruas em brincadeiras inventadas? Tortura para um moleque que sempre estava com pressa. Infringia sempre. Apanhava sempre.

Hoje, o dia chegou cinza chumbo. Lembrei-me da frase tantas vezes repetidas. Hoje, gostaria de ouvi-la novamente, só para ficar em casa entrelaçado com os meus pensamentos.

Em dias tristes, aguados, gosto de ficar no meu quarto. Não estou nem aí se o que sinto está na lista dos sete pecados. Quero mesmo é estar com os meus pensamentos, com os meus segredos, com o meu silêncio quase solidão; gosto, nesses dias quase mortos, ressuscitá-los com os meus lápis de cor.

Hoje, o dia chegou, sussurrando em minha orelha, pedindo pra ficar na cama, transgredindo, sendo cúmplice de seus pecados.

Peguei o celular e mandei uma mensagem: - Por motivo de força maior, não poderei cumprir com o nosso compromisso. Vamos marcar, mais tarde, para uma outra hora.

Quer saber, em dias cinzas, o melhor é ficar em casa. Simples assim.

Estado de ...

 

E quando tudo está uma bosta?!  Acordei num espreguiçar malandro, sem a menor vontade de levantar. Tentei enganar o tempo cerrando os olhos e escurecendo o dia com o lençol amassado cobrindo a minha cara. Fiquei por uns minutos na posição fetal tentando expulsar a minha alma para um outro plano. Queria o levitar do sono; queria um sonho sem me importar com as teorias freudianas ou junguianas – só queria a paisagem de um sonho qualquer.  Precisava, com certeza, era ganhar tempo, mesmo que fosse com um pesadelo que me levasse para longe daquela realidade de merda.

Não funcionou. A realidade estava mais acordada que nunca. Tinha direção certa. A rota estava traçada.

Sentado à beira da cama, cocei a cabeça, contei as manchas antigas encrustadas no assoalho e, por um longo tempo, acreditei que estava sonhando. Mas se fora um sonho, ele acabara no momento em que a água morna batera nas minhas costas. O chuveiro sempre fora meu companheiro nas melhores e piores horas. Não diria o mesmo do espelho. Sempre frio e impiedoso. E foi nele que encarei a verdade.

Aqueci o corpo e tingi a alma com uma caneca de café. Assumi o meu fracasso; assumi a minha solidão e transformei a tristeza em esperança. Rasguei o silêncio com as minhas músicas preferidas. E como um alquimista amador, transformei a bosta em fertilizante.

Gritei:

- Obtuso é o caralho!

Certeza

 


O dia acompanhou a noite e a água continuou a lavar a terra e a alma deslavada dançou nua no acinzentado terreiro. Pés descalços, peito nu e sorriso escancarado. A esfinge que fingia ser uma simples mulher, batia suas asas criando um vendaval. Mas o corpo, quase nu, rodopiava lutando contra o vento que vinha do Sul e a falsa mulher sucumbiu-se, dobrando-se diante da pureza que rodopiava de braços abertos no centro da terra molhada. E a noite recebeu o dia encharcado de esperança.

Sob a lua, sobre nós

 


De repente a lua azul pousa no pico da montanha. A imagem, vista da minha cama, provocou-me um suspiro profundo e uma vontade danada de estar ao seu lado. Pena… estou isolado de tudo e de todos – culpa da peste que não quer ir embora e se aproveita da estupidez humana, que insiste em ignorá-la, para mutar a cada instante.

Sabe aquela canção do Roberto que diz: minha alegria é triste? Pois é, estou assim nesse mundo diferente, cheio de estranhezas e lágrimas. Está bem nem tudo é triste nem tudo é tão estranho assim. A lua azul, por exemplo, é alegria espontânea; o ser mais ranzinza do mundo – que não sou eu - vai esquecer da sua condição de ser chato para admirar essa coisa de Deus.  Hoje, não causa estranheza a ninguém, ver e ouvir um líder de um país regurgitar suas demências e suas maldades. Quem mandou colocá-lo no poder! Não é mesmo?!

Mas esse texto não é para falar de mediocridades. Depois de tanto tempo sem escrever uma linha sequer, não faria isso comigo tampouco com você.

Sim, a lua é merecedora de estar nos poemas de Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Mário Quintana, Vinicius e de tantos outros; ela é merecedora de estar nas canções de Caetano, Gil, Exaltasamba, Chico Buarque e muitos outros.  Ela é merecedora de contemplação em todas as suas fases e cores. Quem não fica paralisado, mesmo que seja por alguns segundos, quando a lua de sangue ocupa o palco celeste? 

Comecei o texto, dizendo que queria estar ao seu lado para contemplar o luar. Comentei sobre a nossa condição atual, do distanciamento imposto, de canções e poetas.

Comecei o texto pensando em você e vou terminá-lo pensando em você.

A lua é cheia, não é azul. Mas ainda assim, aparece sempre linda do meu quarto, provoca-me suspiros e lembranças de ti. Embora não seja um dançarino, arriscar-me-ia alguns passos de bolero com a canção de Adoniran e Hilda Hilst: Quando te achei.

Ah! once in a blue moon... que a expressão não seja verdadeira para nós dois. E que possamos amar na urgência do luar.

Presença

 


Acordei como nunca acordara antes. Acordei com você grudada em minha cabeça. A boca, mesmo silenciosa, denunciava-me pelo cinismo exposto. Os olhos, intrometidos, brilhavam numa felicidade delatora. Coisa rara, raríssima, levantar-me leve, num flutuar quase astronáutico.

Lembra?! Quando ficávamos grudados, pernas entrelaçadas, numa conversa sem fim na penumbra do quarto? Ouvíamo-nos numa delicadeza quase fraterna. Quase. O desejo tatuava nossa pele antes do sumiço da lua. Era inevitável!

Gosto dessas lembranças adocicadas – açúcar seduzido pelo amaro do chocolate. Registro de que tudo ou quase tudo valeu a pena. Que ficou coisa boa, mesmo com a despedida turbulenta e sofrida. Foi necessária...eu sei. Talvez, tenhamos demorado para perceber que definhávamos a cada negação; que não estava tão bom como antes; que estávamos incomodados com a comodidade criada. Mas mesmo assim, eu agarrava a danada da esperança com garras de rapina. Sempre fui um sonhador. Meus sonhos jamais venceriam a tua realidade. Sonho apaga-se, dilui-se. Realidade constrói, defende.

As brochadas eram certas. A lua não aparecia mais inteira. A janela não era mais única. A visão não era a mesma. Havia um abismo no meio do caminho que engolia tudo que aparecia. A delicadeza estava perdendo força. O respeito estava ruindo. O sarcasmo estava apontando na esquina. No meu caminho ventava música. O seu... o seu era sólido, asfáltico, com placas indicadoras, com destino certo. O meu chão era forrado de esperança, o seu era firme, batido, reto.

Hoje, acordei como nunca acordei antes. Ao olhar para o outro lado da cama, percebi que ele não estava mais vazio. Que o fantasma que dormia comigo, desintegrou-se com a luz do dia.

A despedida fora inevitável. Hoje, eu sei...

Engraçado! Acordei com você grudada na minha cabeça.

 

Frente fria.





- A névoa chegou de repente contrariando aquela manhã de dezembro. Era quase verão. Depois da bruma, o céu molhou o chão com uma chuva fina e gelada. No lugar dos shorts, das sandálias e das camisetas estampadas, surgiram tocas, botas, casacos pesados, guarda – chuvas pretos e sombrinhas coloridas. A névoa chegou encolhendo o dia, expulsando o sol, aguando os caminhos e, sobretudo, paralisando o coração.

O corpo enrijeceu-se diante da nebulosidade inesperada. Defesa de quem, até há pouco tempo, acreditava no brilho e no calor humano. Não é fácil o desapontamento. Parecia ser tão simples, bastavam um abraço, um beijo, um afago, que tudo se tornaria leve e transparente. Mas a vida é mais que isso: Há um mundo lá fora, há gentes; há intemperes; há labirintos complexos e muitos deles infinitos.

Depois do silêncio, a avalanche é certa. E depois dela, o caos é inevitável. E depois de tudo isso, as opções são poucas: ou mantém-se o emaranhado construído, ou desata-se cada nó encontrado.

O monossilabismo, de quando em vez, invadia o silêncio que já há muito tempo habitava aquele espaço. Seriam os nós desatando? Ou seria a construção aflita da inevitável desordem?

Isolados, transformaram-se em ilhas - cercadas de angustia e desconfiança. Não havia caminho, não havia ponte. Não havia horizonte. O desalento corroía aos poucos, deixando oco o que antes era sonho.

De repente, numa manhã de sábado, o sol desaparecera, dando lugar a escuridão e a vertigem. O silêncio, fora invadido por músicas quase tristes. O vento chegara miúdo e frio. Trazia consigo cheiro de barro enfeitado de infância.

A música era suave e antiga; os olhares, não. Os corpos juntinhos transcendiam – cúmplices de desejos guardados. O chão de madeira acolhia os pés descalços em passos delicados. A penumbra completava a paisagem que despertava, em ambos, sentimentos esquecidos.

De repente a manhã se fora, o sol reaparecera e a escuridão se dissipara dando lugar a lucidez. A realidade era maior que os sonhos. A despedida fora silenciosa. Sem gritos, sem porrada... simplesmente uma despedida melancólica.

- Que pena, parecia que tudo se inverteria...

- Que nada! Hoje, são amigos.


Astral





Olhar para o céu e tentar adivinhar como será o dia é uma mania que tenho desde a infância. Dia molhado, cárcere privado. Dia ensolarado, moleque endiabrado. Descobri, já adulto, que a estação que mais gostava não era o verão e sim o outono. O nosso outono. Estação amena que traz calmaria e algumas surpresas, como o sol do meio dia e a bruma depois das seis. 
Ela era o meu outono. Ela era de abril. Calmaria em manhãs douradas, quentura na metade do dia e aconchego em noites de lua fria. Gostava de saber da sua existência em minha vida; de sentir na minha pele a suavidade da sua.Ela nascera no mês de abril, não poderia ser diferente. Ela era o meu outono tropical.
Às vezes, sinto-me tão bobo. Bobo como um pedaço de papel zanzando, sem rumo, numa ventania surgida de repente; ou como um menino que fica rodopiando sem parar, de braços abertos, até cambalear como um bêbado, de um lado para o outro, só para ter a sensação da leveza da tontura provocada. Às vezes, ou quase sempre, sinto-me desse jeito: bobo por ela.
No jardim, as lantanas colorem o caminho de pedra, ofertam néctar para as borboletas agitadinhas; as aranhas, lentas e famintas, tecem suas falsas mandalas na certeza de novas presas; as cortadeiras seguem os seus caminhos carregando matéria prima para a produção de seus alimentos; As manhãs chegam mansas e silenciosas, os pássaros acordam mais tarde -  adeus horário de verão, já vai tarde!
Depois de sua ida pra nunca mais, tornei-me mais centrado, menos sonolento e porque não dizer mais arisco: voando por aí como as agitadinhas, desviando-me das falsas mandalas e pousando em lantanas multicoloridas. Nesse jardim de outono, as cortinas fecham-se antes do aparecimento da lua e abrem-se após a claridade solar.
Ela já fora o meu outono. Hoje, não é mais!
Olhar para as suas retinas e tentar adivinhar o que está pensando é uma mania adquirida depois de algumas estações. Coisa minha. Coisa de quem nasceu na primavera e é de escorpião.


Clareza



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De repente não a olhava como antes. A paisagem modificou-se depois do temporal. Restaram o corpo molhado e o assombro. Depois de um tempo, tudo voltou a normalidade. A sanidade deu lugar a realidade; o torpor fragmentou-se com a chegada do vento, permitindo então, a visibilidade das recentes cicatrizes marcadas na derme. Definhou-se o sonho guardado.
Enxergá-la por um olhar frio, calculista, sem nenhuma emoção, foi a maneira encontrada para não se cometer nenhuma injustiça. Arrepender-se de certos sentimentos, de certas convicções – jamais! Aos poucos as interrogações eram respondidas  e as certezas tornavam-se sólidas como concreto. Na lâmina da lança surgiu, uma nova esperança. Com o feitiço desfeito, não havia mais o medo.
Um olhar brilhante, ao longe, fazia-se notar. Era a certeza de um sentimento, semeado aos poucos, cultivado por afagos e gestos verdadeiros.
No negrume da noite, a chama azulada da vela enfeitava os corpos. E no levantar e abaixar da chama, pensamentos surgiam revelados pelas pupilas dilatadas, corações acelerados e membros contraídos. Verdades brotavam no olhar como mágica espiralada trazida por anjos. Na ponta da noite, a finitude mascarou o que antes era escuridão. O dia clareou a paisagem, dourou a alma e abraçou a poesia.

Descontínuo





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Era quentura de derreter. Os corpos encharcados suplicavam por uma ducha gelada. Mais tarde, a água escorria pelos nossos corpos quentes na esperança de lavar a salinidade produzida e diminuir a temperatura provocada. Permanecemos por muito tempo agarrados naquele cubículo ladrilhado e aquático. Com os olhos na cor de sangue, voltamos para a cama as gargalhadas, sorrindo de tudo – crianças grandes fazendo amor e arte. Era boa aquela despretensão amorosa. Aproveitamo-nos o máximo o nosso pecado. Pois sabíamos que depois da transa era vida que segue sem pudor – gente grande que na vertical veste-se conforme o tempo.

Era muito bom estar com ela, gostava daquele jeito aberto de dizer-me coisas sérias de maneira divertida; tínhamos tudo para sermos mais que amigos. Quando disse-me rindo, que eu era o seu crusch, fiquei sem saber o que dizer. Pois não sabia o sentido da palavra naquele contexto - desconfiava:

- Eu sou totalmente encanada quando estou numa relação. Se não atende o telefone quando ligo, já vou logo achando que a relação está esfriando, que pode estar com outra. Fico paranoica.

- Xiiii... que coisa... vivo com o celular desligado, não gosto de atender em qualquer lugar... se tivesse uma namorada com esse seu jeito não duraria uma semana...

Risos

- Vai vendo! E você é meu crusch...

Fomos interrompidos e mudamos a conversa, dando atenção as outras pessoas que estavam na sala.
Gostava de estar com ela, da nossa amizade. Mas tem gente que não consegue esperar. Tem urgência. Tornamo-nos fiapos na ponta dos cílios.

Hoje, o céu encontra-se nublado, há vento, mas o barco está vazio.

Paixão



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À sua presença, desmanchava-se em sorrisos. Desconstruída, tornava-se pluma levada ao vento.
À sua presença, a intensidade definia-se em longos suspiros. O silêncio era o seu mundo.
O sonho: futuro!

Enredada



Achava-se esperta, conhecedora dos sentimentos alheios; tão implacável na arte de enganar que acabara esquecendo-se da própria identidade.
Ficou presa na teia construída.


Perdão


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Na ponta do cílio, a última gota de um sentimento guardado. O sorriso veio leve, os olhos desembaçaram-se com um esfregar de mãos, e a vida seguiu o seu fluxo margeado por flores, bichos alados e poucas intempéries. No chão, pés descalços. Na cabeça, nuvens.
Voltou a sonhar.